quinta-feira, julho 16, 2009

Do Arco da Porta Nova

Ando a fugir a atravessar o arco da Porta Nova há que tempos. Fujo-lhe porque soube, por uma pessoa que sabe, soube, também de outra pessoa, que mais dia menos dia aquilo cai. Como não me apetece estropiar-me ainda, finto o destino, fugindo ao arco: viro antes à esquerda, subo, perco-me por tabuletas antigas, janelas a abarrotar de vasos, mais ou menos floridos, e ruelas adormecidas, como eu, até ao café do costume; passo os olhos pelos chãos romanos em volta da Sé, quantas histórias!, encanto-me com cada recanto da parte antiga desta cidade ainda mais antiga. E o arco lá longe.

Há dias, como hoje, em que tenho muita coisa para fazer antes de, muitos lugares para ir, um telefonema importante, entre uma série de toques para despertar, coisas para marcar, coisas para comprar, coisas para ir levantar, coisas para deixar..., uma agitação antes do pequeno-almoço, que os vinte minutos do almoço não esticam e há que aproveitar que a Biblioteca entrou no horário de Verão e agora abre meia hora mais tarde.

Foi assim que, depois de tanto tempo, esquecida de tudo, mas especialmente das advertências amigas da informação privilegiada, foi assim que transpus novamente o arco. E foi assim que transpus o arco que. O saco das cópias a deslizar ombro abaixo, o telemóvel a vibrar como um louco na mala, o vestido a querer repartir a atenção voando, para longe e para cima. E para mim, que não sou Marilyn, pit stop obrigatória em boxe improvisada ao ar livre. Longe, o mais longe possível, de debaixo do arco, mas ainda assim tão ali.

Ajeito-me.

Deve vir tapado. Os que vêm da Alemanha, pelo menos, é assim que vêm.

Atendo o telefone, lacónica para ser rápida.

E... você vai?

Vou, então não vou!?, claro que vou!. Mas o pior nem é isso, o pior é a viúva. Agora é que vai ser um tormento. Se já antes, era o que era..., agora, viúva, é que vai ser!

Meto a rapidez junto com o telemóvel, no bolso da mala. Há histórias que nos desarmam e prendem ao chão – e isso, isso apaga todo o dever. Esqueço o tempo, e, cega para o mundo, toda a atenção na conversa, vou-me ajeitando-me vezes sem conta. Desajeito-me ainda mais vezes, para poder voltar a ajeitar-me e continuar a ouvir.

Antes, cada Verão que viéssemos, quando vínhamos, era vê-la bem a meio da tarde abrir a janela, eu na minha, por detrás da cortina a ver tudo, ela a olhar, ela ficava a olhar para cá o dia todo a ver se... Antes, cada Verão que viéssemos, eles também vinham, não sei como, era assim, acontecia!, nessas alturas é que era. E agora viúva!... É que..., eles sempre gostaram um do outro, desde miúdos, sabes? Eles sempre gostaram um do outro. O meu marido, o meu marido não diz nada, claro!, nem eu a ele, mas percebo tudo, eu a perceber tudo, naqueles verões, tudo, quando ela vinha a meio da tarde, em dias maiores que o passado, em dias em que olhá-lo da janela não chegava, naqueles verões, ela afastava a cancela e ficava a olhar. Ele nunca diz nada mas, desde miúdos, sabes? Ela olhava assim de muito perto. Ela, toda olhar, parada, quieta, ali à nossa porta. Às vezes, muitas vezes, ele à porta, passavam a tarde toda a conversar. Eles sempre gostaram um do outro. Ele à porta, eles, a tarde toda, a conversar. Cada Verão isto, um tormento!... É que... eles... eles sempre... O meu marido nunca me disse nada, claro!, nem eu a ele, mas. Agora que está viúva..., já estou a ver...

Eu também.
E lembrei-me do I carry your heart with me do E. E. Cummings:

I carry your heart with me (i carry it in
my heart) I am never without it (anywhere
I go you go, my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling
I fear
No fate (for you are my fate, my sweet) I want
No world (for beautiful you are my world, my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you.

Here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
And this is the wonder that's keeping the stars apart

I carry your heart (I carry it in my heart).

4 comentários:

Maria Rita disse...

Esta escrita deambulatória pela cidade é tão envolvente. :)
E há histórias na vida das pessoas que conseguem ser tão (im)perfeitas que ás vezes chegam a magoar.

Beijinho*

Joana disse...

Frida,

As cidades são ambiente humanos fantásticos, não lhes resisto, Braga então?!..., tu sabes... :D

A imperfeição é uma parte, ínfima, da perfeição. :))))) Ehehe!!!

Jinhos, Ritinha, e obrigada pela regularidade (e sobretudo pela paciência que ela implica).

Maria Rita disse...

Nada para agradecer. Agora tenho muito tempo para vir aqui, e faz-me tão bem ler estes pedacinhos de ti. É um prazer. Dos grandes. :)

Beijinho*

Joana disse...

Frida,

É um prazer que me dás também. ;)






Jinhos.