quarta-feira, julho 15, 2009

Coisas do meu lado esquerdo (II)

Há coisas que me deixam sem palavras. Dizerem-me que ressono, por exemplo, que ressonei ontem à noite, muitíssimo, e não deixei dormir, é uma delas. Se ressono, é apenas e tão só do lado esquerdo. (Tenho quase a certeza que, a ressonar, ressono apenas do lado esquerdo.) O meu lado esquerdo é a coisa mais frágil, temperamental, esquisita e extraordinária de todas as coisas do mundo.

Se me dói a cabeça, é do lado esquerdo; se me doem os dentes, gengiva esquerda; se me morderem as melgas, bem a meio da perna esquerda; ao ir para o trabalho, se me pesam as cópias e os livros, ombro esquerdo; em casa, se de chinela no pé, mais ou menos calçada, mais ou menos descalça, vou contra os móveis, tantas vezes a toda a hora, colhe o embate o pé esquerdo – e só isso explica porque duas das minhas unhas desse pé condizem com o top de hoje no tom quaresmal.

Rio e choro do lado esquerdo. Sei disso porque quando choro muito fico com o olho esquerdo mais pequeno. (Muito mais pequeno.) Quando rio, normalmente depois, o mesmo olho acusa o toque, encolhe-se, apouca-se, diminui, e eu penso no quanto o riso pode ser uma outra forma de choro, e o choro, um outro riso. Do lado esquerdo.

Deito-me sobre o lado esquerdo, em considerações apenas. Aqui e agora. Na realidade, deito-me todas as noites sobre o cansaço que me mói cada dia o fundo das costas; deito-me a olhar-me nos vestígios do dia que a minha cabeça faz desfilar no tecto; deito-me na posição anatómica de referência e não ressono (!), não me mexo, quase não respiro. Ocasionalmente, viro-me sobre o lado direito. À direita fica a janela e o dia que amanhece todos os dias, um pouco antes de o meu despertador tocar.

O coração, quando me dói, é do lado direito.

6 comentários:

V. disse...

«De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável. No segundo caso, o homem que não dorme pensa: o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.»

Carlos de Oliveira

beijinho*

Joana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joana disse...

Vanessa,

Sem querer, apaguei o meu comentário ao teu comentário.

Aha! Começo a conhecer-te! (Sabia, mas sabia mesmo!..., que ias colocar este excerto do Carlos Oliveira! Coisas...) :D

Mind readers we are. :))))))))

Jinhos.

V. disse...

ihihih! :)

Maria Rita disse...

Gostava de ter estas certezas que tu tens. Quando o meu coração doi, doi o corpo todo. Doi a alma toda. E não quer saber de lados. És uma sortuda :)

Beijinho*

Joana disse...

Frida,

Ter certezas é péssimo, acredita. Mas sim, sou uma pessoa cheia delas, embora, com os anos sinto que as vou perdendo mais e mais. Para o bem e para o mal.



Jinhos.

P.S. Sem querer explicar muito, não gosto e não devo, o último período é uma provocação/brincadeira: o coração dói-me do lado *certo*. ;)