quarta-feira, novembro 29, 2006

Da utilidade da trela

O meu périplo around the neighborhood a caminho do campus é fonte das melhores coisas que me acontecem todos os dias. Até bem há pouco. Então, achava que ia sentir ainda muitas saudades das caras ensonadas e dos cães, canzarrões e cãezinhos, do costume.
Todas as manhãs o mesmo: é a minha vizinha, dona dos mil e um gatos, que saltam o muro e vêm para o meu jardim, que luta com o sono para me dizer Hi, how are tou doing?; é o jeitoso do jogging, e respectivo cão atlético, que nunca me diz Good morning!, mas ri-se e pisca o olho, divertido; é o vizinho médico, dono do Milu e do Ideafix, que me diz Good morning! enquanto tranca o portão, acena à mulher, que invariavelmente deixa a ler o jornal under the porch, e tenta calar o Ideafix – que faz em gala em esgoelar-se à minha passagem (mas somente de manhã, quando o dono está por perto) – ; é o outro vizinho médico, mais jovem, que se esforça por articular um Good morning! sorridente enquanto faz das tripas coração para segurar a trela do cão – fora de si, de contentamento, quando me vê – sem deixar fugir o carrinho das gémeas mais lindas deste país – sim, o senhor passeia, todos os dias, de manhã, around the block, o cão e duas bebés de uns seis mesitos, bibes rosa e lacinho a condizer no cabelo que ainda não têm; – é o artista antipático que tem três orcas de pelo, perdão, cadelas, do tamanho do mundo que ficam fora de si – mas não de contentamento – assim que me vêem despontar ao longe… E estes são apenas os regulares, há muitos outros que vou vendo de vez em quando, mas que, como a frequência é variável, não conheço tão bem.

Em Portugal cães são, desde miúda, um problema para mim. Reagem todos como as cadelas descomunais do artista. Com a diferença de que aí não há "artista" que os segure. Por isso, fiquei muito satisfeita quando comecei a fazer o meu percurso matinal e notei que, regra geral, todos os cães me ignoravam, excepção feita às três “baleias-panda” e ao Ideafix, com o dono por perto. Tinha finalmente deixado de ter aura de gato! Yupie!!!

Mas não. Sem se fazer anunciar, a minha “felinidade” voltou, não havendo desde a semana passada, pelo menos, cão que me suporte. Agora, até o Milu se junta ao Ideafix no coro de impropérios caninos furiosos dirigidos à minha pessoa! E depois, é como a comichão – ou o choro nos bebés –, começam todos os do block, e depois todo neighborhood, em feroz desassossego. Que bela maneira de me dar os bons-dias!
Porém, a minha primeira experiência de real terror canino por estas bandas foi com o cão de um vizinho até então desconhecido para mim, – vi Portugal tão perto! –, nessa altura atribui o ladrar furioso e a velocidade da corrida na minha direcção à comida que levava para o Departamento. O dono subscreveu a minha hipótese, tornando-a uma espécie de desculpa para a sua incapacidade em dominar o bicho. Não gostei. Are you trying to say that this is my fault? – pensei, não disse, silêncio acompanhado de sorriso esforçado, mandou a consideração pela ausência de cabelo, as rugas, o excesso de peso e o pijama branco do senhor.
A segunda, não se explica, nem comida levava, mas como foi sanada imediatamente pela voz autoritária do dono, ou dona – já nem me recordo, facilmente esqueci.
A pior foi há dias, a terceira, a responsável por ter vindo o rosário todo à memória, e por este post. Oito e meia da manhã de Domingo, o último dia da quadra de Thanksgiving. Quando uma pessoa espera, crê, que toda a gente – e respectivos cães – esteja a dormir. Quando não lembra ao mais pérfido dos seres pensantes que exista alguém – americans! – que tenha já ido ao MacDonald’s buscar o pequeno-almoço e seja dono do belzebu em forma de cão. Pior: que esse alguém até seja simpático, pareça boa pessoa e aparente um estado mental dentro dos padrões da normalidade – Como é que alguém assim coabita com o demo? Primeiro, foi o dirigir-se louco a mim, como se não houvesse dono, nem amanhã; depois, aquele som, vibrante, horroroso… só faltava que espumasse ou metesse o dente! A cada advertência do dono, o ladrar cessava – o que me permitia avançar, mas a cada passo, perdão, passinho, meu, voltava a fúria e a aproximação do cão, que franqueava, despudorado, o meu espaço pessoal – aquele perímetro de menos de um metro que os americanos simplesmente adoram! Bem, qual tom de voz, qual firmeza, qual segurança, qual autoridade, qual Buddy get here now! elevado a todos os quadrados e cubos do mundo, o homenzito tentou de tudo, mas o BigMac que o bicho queria era eu e não havia volta a dar-lhe. Entretanto, sem me preocupar muito com a situação – afinal está sempre a acontecer-me –, mas imóvel, enquanto decorria o diálogo de surdos, perdão, as conversações com sua excelência “O Cão” – Buddy, “companheiro”, só por ironia do destino! –, uma única imagem me vinha à mente: uma trela.

Tão simples. Uma t-r-e-la! Trela. Não percebo a incompatibilidade da generalidade dos americanos com a melhor invenção humana desde a roda! (Que eu saiba, apenas o pai das gémeas e o rapaz do jogging fazem uso disso.)

Pessoalmente sou contra trelas. Psicológicas. Abomino aqueles “Onde é que estás?” que saem nas conversas telefónicas curiosamente sempre antes do “Olá, tudo bem?” Eu acho que nunca importa onde se está, importa é que se esteja bem. Não? Mas precisamente para se estar bem, advogo o diametralmente oposto para os cães. Perigo público sem as ditas, trelas – qualquer paralelismo com a situação anterior é escusado, não há comparação possível! Trata-se, a meu ver, neste caso, de uma questão de segurança, national security - para por a coisa bem ao gosto dos americanos.

E não é como nos filmes, americanos – pois claro! –, em que destes recontros nascem grandes histórias de amor. Nascem antes grandes histórias de terror. Atesta-o a experiência. Claramente.

4 comentários:

Anónimo disse...

Quanto ás trelas, creio que estão esgotadas (BDSM oblige).
Para ti só vejo uma solução: compra um cão! Primeiro porque distrai os outros, segundo porque se cheirares a cão todos os outros passam a ver-te como uma "Buddy" também...
Eu tenho um e alimento mais dois vadios. Na aldeia onde vivo (desde que há uns meses me fartei das cidades), creio que começo a ter fama de doido por me verem passar todos os dias à noite rodeado de cães. Talvez por isso - por já ter "aura" de cão - não há canino que me chateie.
Um beijo grande

Joana disse...

Eheheheheeheh!

Que bela solução! (Não me tinha ocorrido.)

O pior viria depois, daqui a dois meses mais precisamente... quando regressar a Portugal, que faço? Deixo um vadio nos States ou exporto-o para a tua aldeia? :P

Jinhos.

P.S. Um homem rodeado de cães todas as noites numa aldeia algures em Portugal, ainda não te excomungaram? ;)

Anónimo disse...

Penso que estão a tratar de o fazer... Mas com a nossa burocracia isso ainda demora uns anitos...

Joana disse...

Afinal a morosidade - tão portuguesa! - de alguns processos tem vantagens! ;)

Jinhos.