quarta-feira, novembro 01, 2006

Hoje: dia de Pão-por-Deus


A minha irmã mais nova lembrava-me ontem num comment que hoje é Dia de Pão-por-Deus. É mas não parece. Aqui. Não é dia santo, feriado nem por sombras, trabalha-se como sempre. Muito.


Agora que a hora mudou, a minha rotina sofreu alterações. Também. Regresso a casa mais cedo, assim que anoitece; mas parto para a Universidade mais cedo também, assim que amanhece.

Gosto das manhãs: gosto de me levantar cedo, do cheiro fresco do dia que desponta, gosto do cinzento, claro e triste, tão parecido ao dos meus primeiros Outonos escolares na Madeira, gosto das pessoas que encontro pelo caminho – as mesmas todos os dias… Gosto das manhãs!

Mas esta manhã começou uma hora antes do habitual. E, descobri, as cinco da manhã não têm a mesma graça que as seis. Para mim. Por tudo o que o breu silencia e contém. Não gosto. Tal como não gostei de ter acordado assim, de sobressalto, com um restolhar ensurdecedor de chaves à porta e o subsequente abrir pesado, certamente ensonado, da mesma. Alguém regressava de uma Halloween Party e ia dormir cedo, manhã cedo. Volto-me para o lado, viro para o outro, tudo em vão: o sono tinha ido fugido no preciso momento em que a porta se abrira. Assim sendo, pequeno-almoço, suminho, frutinha, duche, loção, roupa e... ainda nem tinham passado trinta minutos das cinco! Como é que a Insónia faz isto ao Tempo? (O Amor devia pedir-lhe uns conselhos!) Comecei a pensar então na melhor maneira de enganar a Eternidade. Não podia sair de casa, ainda era muito escuro – em Houston a única iluminação das ruas resume-se à que vem do interior das casas, pelo que é fácil de depreender o estado da minha rua às cinco da manhã. Pus-me a ler. Irving Wallace. O único livro de Irving Wallace que encontrei numa bookstore há dias. (Reprint Irving Wallace, please!) O homem sabe tão bem contar histórias! E descreve tudo o que é polémica de uma maneira tão simples e despretensiosa que até parece natural. É maquiavélico. Consegue criar uma empatia imediata entre o leitor e as chocantes personagens que apresenta. Conquistou-me. Porque gosto de saber como as pessoas pensam. Leio por isso. Em Paris li os Rosseaus, os Flauberts, os Baudelaires, os Rimbauds, as Nothombs, os Pagnols todos. No original. E percebi muita coisa. Aqui igual. Os Whitmans, os Poes, as Plaths, as Woolfs, os Safran Foers, os Austers e agora o Wallace. E também começo a perceber algumas coisas. Além do que assim amanheceu num ápice. Porque os livros dão ao Tempo o antídoto para a Eternidade trazida pela Insónia. (Se o Amor andasse menos com os Livros e mais com a Insónia aprendia umas coisas!) Foi então que me pus, finalmente, a caminho do Departamento. E, surpresa das surpresas, não encontrei viv'alma pelo caminho. Ninguém. Estava convicta de que não encontraria nenhum dos habituais, quarenta minutos antes do previsto seria estranho, mas ninguém, é obra!!! Depois lembrei-me: ontem à noite, yesterday night from 6 p.m on os meninos e as meninas, assustadoramente disfarçados, baldinho cor de laranja na mão, percorreram os blocks todos do neighborhood, tocando às campainhas e pondo a voz mais tenebrosa que conseguiam, asking for tricks or treats em cortejo mais ou menos solene, com os papás, que supervisionavam da estrada a scary performance dos filhos e que agradeciam por eles os treats. Porque fantasminha ou bruxinha que se preze não agradece, suponho.


E lembrando-me disso, lembrei-me do Pão-por-Deus que a minha irmã mais nova fez o favor de me recordar ontem. Não conheço bem a tradição continental, mas na Madeira, há muito tempo atrás, no dia de hoje, as crianças também percorriam a vizinhança e batiam às portas, mas em busca do Pão-por-Deus. Não pediam doces, mas fruta – a da época: castanhas, nozes, figos passados, peros –, não ameaçavam com partidas, cantavam – cânticos típicos deste dia que francamente não recordo, mas que, suponho, misturariam o sagrado e o profano (candidamente, como é usual...); não tinham mini-baldes, de plástico, cor de laranja, em forma de abóbora, mas saquinhos de pano, normalmente chita – o pano dos pobres –, muito semelhantes aos antigos sacos do pão, mas com uma alça maior, para cima do ombro. Tivemos vários saquinhos desses. Eu e os manos. E não era por fazermos a ronda à vizinhança, que nunca fizemos; tínhamos porque tínhamos, era tradição, era dia de os termos, era o Pão-por-Deus! Um dia, no Ciclo, tivemos que fazer cartazes alusivos ao Outono e a mim coube-me o Pão-por-Deus. Drama. É que as minhas capacidades para o desenho são muito limitadas. As da minha mãe também e as do meu pai desconheço. “Sim, mas tens uma letra bonita, procuras um texto, passas numa folha, colas ao centro e eu penso no resto.” – disse a minha mãe. Não sei qual das duas se divertia mais com os meus trabalhos. Ainda hoje penso que era ela. Quanto aos textos, nada mais fácil: fui para a sala, vasculhei as estantes, remexi-lhe os livros todos e em três tempos arranjei uma das tais canções típicas deste dia num dos muitos livros de História e Cultura Madeirenses da minha mãe. Eureka! Chega a noite e com ela os meus pais e o jantar e as minhas novas acerca do texto e do trabalho e as novas da minha mãe acerca do resto que era a ideia. E a ideia era: um saquinho de Pão-por-Deus, duas folhas outonais – uma amarela e uma vermelha, e castanhas, mas ainda no ouricinho. "Excelente!!!" – exclamei. A minha mãe sempre teve boas ideias. Adorei. É claro que o tempo passou, muito e longo, porque a minha mãe tem um trabalho desgastante, a casa e outros afazeres e na véspera da entrega o saco continuava a ser uma ideia. Ainda. Como é típico na minha mãe, boa portuguesa. “Ah, é para amanhã, faço já, à última da hora sai tudo melhor, é o bom da pressão, não te preocupes!” E assim foi, noite fora, frente à máquina de costura e aos meus olhos que teimavam em colar, o saquinho foi tomando forma. (Tanto trabalho porque ninguém queria doar o seu saquinho (nem eu própria!) à nobre causa do anúncio do melhor que o Outono tem by JJ.) Às primeiras horas da manhã o nosso trabalho estava pronto. O saquinho à esquerda – alça esvoaçante –, o texto a meio, as castanhas à direita e no topo do texto as duas folhas, saídas do saco levadas pela ventania. Lindo! Um sucesso que ficou para a História. Da escola. De casa. Porque em cada ano neste dia fala-se do saquinho. Ou da importância que um saquinho de Pão-por-Deus na vida de uma pessoa.


Todos os anos, neste dia, levantamo-nos tarde, afinal é dia santo (e não feriado!), no entanto não vamos à missa nem ao cemitério, deixamos isso para amanhã, Dia das Almas e (dos Fiéis Defuntos); a minha mãe vai aos armários da cozinha e ao frigorífico, traz de lá montes de sacos e começa o ritual da distribuição: quatro laranjas, quatro maçãs, quatro peros, quatro peras, meia dúzia de figos passados, uma dúzia de amendoins, meia dúzia de castanhas assadas, outra meia de castanhas cruas, vezes quatro, tudo para dentro dos ditos saquinhos, quatro, cada um segura o seu, o mesmo desde tempos imemoriais; também não tomamos o pequeno almoço porque são onze e meia e daqui a uma hora almoça-se; os meus pais cozem um panelão de castanhas que servem numa travessa enorme ao almoço e que depois disso, ainda cheia, fica o resto do dia a meio da mesa da cozinha. Caso apeteça!... (a mesma travessa no mesmo sítio, à mesa, dia fora no Carnaval com malassadas!) E depois é ver quem chega ao fim do dia com o saquinho mais leve (e o estômago mais pesado)!


O presente acima é obviamente histórico, há quase duas mãos de anos que não é assim. A Madeira é um longe tornado perto apenas pelo telefone e o Tempo só cresce à noite, com a Insónia. Não obstante, o saquinho é presente. Não histórico.


O saco é presente mercê de uma temporada de praxe muito dura algures nos finais de Outubro de 98. Tempos difíceis em que a exclusividade da zona de origem me converteu na estrela – digamo-lo de forma bonita – da praxe. Vida de estrela é difícil: muita solicitação, muitas obrigações, muitos deveres, muito esforço para conseguir o equilíbrio entre o exequível e o não exequível… Conclusão: há um dia em que a lágrima salta a barreira do auto-controlo e o choro vem. Ingente. Temeroso. Avassalador. Veio. Mesmo. E a minha mãe não gostou. E era 1 de Novembro, o almoço tinha sido por acaso castanhas cozidas, mas não havia saquinho. E a minha mãe não gostou. E prometeu que esse seria o meu único Pão-por-Deus sem saco. E foi. Desde então, todos os anos me manda, a mim e aos manos, pelo correio, o "bendito" saquinho. Duplo pretexto: primeiro, para a celebração que o dia merece, até porque os manos, tal como eu nos idos de 98, se comprometeram a encher o mesmo com a fruta da época onde quer que estejam(os); depois, para se fazer presente, dizer de uma maneira bonita no início de cada Outono, estação tão pródiga em estados depressivos, “Eu estou aqui”.


6 comentários:

addiragram disse...

Citadina, nunca vivi essa experiência...e tenho pena! Lindo ouriço,linda castanha.

Joana disse...

Addiragram,

Tenho pena que tenha vindo visitar-me quando este post estava pela metade, só agora tive tempo de o completar... Mas concordo consigo na beleza da castanha! ;) Jinhos

K. disse...

Que bonito. Nunca tinha ouvido falar de pão-por-Deus. O que é exactamente?

Rosario Andrade disse...

Ola JJ,
Adorei ler o texto! Tao engraçado ver como as tradiçoes sao diferentes em diferentes lugares... é bonito que a mantenham apesar da distancia.

Ja levantar antes das oito... isso seria um grande problema para mim...
Bjicos anchos

Joana disse...

K.,

Bonito, sem dúvida!

Até literalmente: invocação a partilha do pão necessário ao corpo e ao espírito.

Mas muito mais que isso: O PÃO POR DEUS era uma das tradições mais arreigadas nas ilhas (embora nos Açores a origem seja algo distinta da Madeira e de alguma regiões do continente - mensagem escrita em papel colorido, filigranado, rendilhado, em forma de coração, enviada aos parentes e amigos, nos meses de Outubro e Novembro, que ficam com a obrigação de enviar, pelo Natal, um presente ao remetente; a maioria das vezes a mensagem é em forma de quadras). Bem, o "nosso" O PÃO POR DEUS teve a sua origem no sufragar as almas (daí o dia 1 de Novembro), as chamadas esmolas perdidas, que eram recolhidas fora de casa e distribuídas no maior recato.
Sobretudo nas freguesias rurais, mas também na cidade, viam-se, neste dia, grupos de crianças que andavam de porta em porta, pedindo Pão por Deus, recolhendo em saquinhas, dinheiro e guloseimas e, por vezes mesmo, alguns géneros alimentícios; afinal, todos davam o que tinham por casa.
Era grande o reboliço dos grupos e, lugares havia, em que iam mesmo entoando cânticos alusivos...

Havia até quem repetisse a tradição na véspera de S. Martinho cantando-se pelas portas até que estas se abrissem, para a primeira prova do vinho novo...

Uma espécie de "Halloween a portuguesa", sem disfarces, sem travessuras, mas com muita doçura! ;)

Joana disse...

Rosário,

Tradicoes diferentes, lugares, diferentes, pessoas diferentes... intenções/objectivos semelhantes! ;)

JSílvio,

Machico celebrou o Pão-por-Deus? ;)



Jinhos a todos os que por ca passaram.