sexta-feira, agosto 14, 2009

De tabaco, saudades e outras coisas bonitas

Agora que o metro chega cinco minutos depois do costume de todos os dias do ano que são de trabalho, corro menos: acordo mais tarde, demoro exactamente o mesmo tempo no banho – os prazeres que não tiram férias!... – visto-me mais lentamente, tranco a porta com todo o vagar, saio porta fora a pensar devagarinho em tudo o que tenho de fazer no dia, apanho a pastelaria do fim da rua a abrir, cumprimento o dono, sorriso lento, dobro a esquina, voo lento, quase me arrasto até ao metro, lento. Saio do metro ainda a pensar devagar, uma prioridade para este dia em cada degrau até São Bento. Hoje, o insólito: um maço de Águia bem no cimo das escadas a baralhar-me as prioridades.

Águia era o que o meu avô fumava, sempre que não havia Santa Maria.

Quando tínhamos visitas de fim-de-semana, outros fumadores – que o meu avô era a única pessoa fumadora da família de casa –, entretinha-me a olhar para os outros do colo dele e a notar o quanto o meu avô era especial. As outras pessoas fumavam cigarros diferentes, com filtro, cheiravam diferente nos beijinhos, nada a ver com o meu avô, tossiam – às vezes muito, nunca o meu avô, e tinham unhas como as minhas de criança, nada a ver com o polegar e o indicador amarelo-torrado que sempre me davam a mão nos passeios.

Às vezes, a meio dos dias, o meu avô sentava-se no canapé da rua para aquele cigarro e eu seguia-lhe o encalço. Deixava-o sentar, puxar do cigarro, começar a fumar e logo trepava perna esquerda acima, ele a içar-me sem dizer nada, eu a endireitar-me lá em cima, eu a sentar, eu sentada a encostar a minha cabeça ao seu peito, nós dois quietos, calados, a ver o sol a descer no pico.

Hoje em dia, quando estou em casa e é Verão, na casa que é dos meus pais, foi dos meus avós e é, será sempre, nossa, às vezes, a meio de tardes demasiado longas, sento-me no canapé de agora a olhar o sol de agora no pico. E raramente me lembro do meu avô: o canapé é outro, o sol também, já não temos alpendre, e o cheiro a tabaco Santa Maria, ou Águia, desapareceu. Uma vinha substitui o alpendre, protege-nos do sol como um manto, e impregna todo o quintal com aquele cheirinho doce a uvas e a fim de férias de Verão.

Hoje em dia, quando estou em casa e não é Verão, e a ausência da vinha se faz sentir logo nas primeiras chuvas, e, cabelos molhados, ombros molhados, esquecida do meu avô, penso que toda a casa devia ter um alpendre com guarda-chuvas para as saídas e um baloiço-duplo e mantas para quando se quer ficar ali de chocolate-quente na mão, no Inverno. (E uma rede para um chá-gelado e conversas de fim de dia, no Verão – como nos EUA!...)

Hoje, quando me lembro do meu avô, é longe. Longe do canapé, longe do sol, longe do pico e, porém, demasiado perto da menina que queria aquele colo, para sempre, e só para si; demasiado perto da menina que, já perto do fim, lhe ia comprar o tabaco, mais ou menos às escondidas, mais ou menos ciente, mais ou menos ciosa - nunca deixei de ser a menina que queria aquele colo para sempre.

Hoje, lembro-me do meu avô muitas vezes, mas sobretudo quando passo por um aroma, o cheirinho dele, que nunca foi de tabaco, mas de beijos e da pressão terna de uma mão grande encaracolada dentro de uma mão pequenina.

10 comentários:

Vanessa disse...

ohhh... que ternura! eu lembro-me do meu avô sempre que vejo umas mãos grandes e largas. só que ele fumava português suave daqueles maços amarelos. e eu, já perto do fim, também lhe comprava o tabaco às escondidas. e depois era vê-lo a rir-se - com muita vontade e algum esforço - como se fosse só nosso um qualquer pacto muito secreto que ninguém podia saber. e eu sentia-me assim importante por fazê-lo sempre sorrir, sabes?

(saudades.)

isto tudo para dizer: que texto tão bonito! :)

beijinho grande*

Joana disse...

Vanessa,

Sei. :))))))))))))))))))))))))

É tão especial, daquele especial-mesmo-especial-impossível-de-igualar-repetir a relação avós-netos, não é?


Jinhos.

Vanessa disse...

sim... :)))

olha, resta-me a minha avó, que neste momento está a preparar um grande tacho de massa com feijão para a famelga toda e eu já estou atrasada! eheheh! e são estas coisinhas e outras tantas que são mesmo irrepetíveis! :D

beijoooo*

Joana disse...

Vanessa,

"... e são estas coisinhas e outras tantas que são mesmo irrepetíveis!:D"

... e que levamos da vida! :D

Menina, corra, corra que essa "massa com feijão" é o seu "paio com ervilhas".

Bon appétit!

Jinhos.

Maria Rita disse...

Eu lembro-me do colinho do avô, numa cadeira daquelas de abrir, ao final da tarde, perto do tanque de cimento. Não havia por do Sol, mas haviam os raios a embater no jardim meio exótico da avó. E era o meu consolo, sem dúvida!

E este texto é de uma sensibilidade tão apurada, que quase faz chorar. É a tua arte :)

Um beijinho*

Joana disse...

Frida,

É a minha arte. Lindo!




Jinhos, Rita.

P.S. A sorte que eu tenho em ter amigos com esta presença tão boa!, um consolo, também. ;)

Maria disse...

''o polegar e o indicador amarelo-torrado'', era mesmo assim a mão do meu avô, e o tanto que me fizeste recordar... Tens aqui algo de muito especial, algo que adorei.

Um beijinho

Joana disse...

Dançando,

Temos todos porventura ;), hoje, aqui é 'Avô, no caso, o meu'. Mas temos, todos. E ainda bem. :)))))))


Obrigada pelo comentário tão simpático!



Jinhos.

Janaina Amado disse...

JJ, estou vindo lá do comboio turbulento. Lindo texto este seu, terno, verdadeiro. Eu, que ando a me lembrar da menina que fui, me identifiquei com seus sentimentos. Ótimo domingo e um abraço do Brasil.

Joana disse...

Janaina,


Ele há viagens de comboio que, por nos marcarem, vale a pena repetir! ;)



Jinhos.

P.S. Volte sempre, de preferência da mesma origem!