terça-feira, agosto 25, 2009

Retrato de L.

L. anda na casa dos quarenta anos mas de costas aparentará dezasseis. Aparenta dezasseis, veste vestidos e tops de adolescente de dezasseis, penteia os cabelos, ora presos num rabo de cavalo, ora soltos com fitinha, como se tivesse dezasseis, não come como se tivesse dezasseis, fuma e fala como se tivesse dezasseis e, sobretudo, pensa como se tivesse dezasseis.

L. é divorciada, e, mulher que é, tem um ódio visceral a tudo o que é mulher. Um ódio feito de invejas, maledicências, lambe-chinelismos – que ainda não atingiu o nível que lhe permite chegar às botas, ainda... – e todas as outras mesquinhices que minam as pessoas pequenas todos os dias, a situação marca a hora, até de humanidade só restar delas uma carcaça e a sombra.

Em tempos imemoriais, mas memoráveis, pelo menos para a própria, L. terá jurado aniquilar a raça humana no feminino, único óbice a um futuro de glória, eterno de tão longa e ardentemente desejado, junto do humano menos humano e mais deus de dinheiro e estatuto, que é poder e divindade nos dias que correm, e tão depressa!, na cabecinha, e no corpinho, da dita.

Inicialmente pensei que era comigo, o problema. Ter-lhe-ia sido indelicada, mas quando?, não tenho o hábito, porém é possível que me tenha distraído alguma vez, não sei. Depois, depois pensei que o problema era conjunto. Ter-la-íamos aborrecido com os risos de pequeno-almoço na esplanada aqui em frente, nem falamos ou rimos muito alto, mas é possível que alguma vez, não sei. Depois disso, comecei a pensar que o problema era com ele, que somos amigos, que tivémos professores em comum, que nos conhecemos da Faculdade, que coisas de há cerca de uma década levam tempo a por em dia, que ela pode não saber disso e porventura acalentar alguma esperança secreta e daí o medo que risos de pequeno-almoço e cafés e croissants seriam capazes de desencadear um cataclismo, risos e cafés e croissants ter-lhe-íam enviesado a esperança, não sei.

Por fim, soube, porque me disseram, de outra forma nunca, que o problema comigo especificamente é o da convergência do problema de sempre, a mulher odeia mulheres!, com o problema do futuro, a mulher vive para o estatuto!... (Que estatuto?)

Andam gerações de mulheres a lutar por uma sociedade cada vez mais plural, e por isso indiferente ao género, para sair debaixo de uma pedra qualquer, répteis destes!...

O que isto me aborrece! E me perturba – paralisa-me, aquele olhar ofídio. E perturbando-me, influencia o meu rendimento, o meu trabalho; porque invade o meu espaço pessoal, da estante onde finge ajeitar os livros, da secretária que finge arrumar, do computador que finge ligar ou desligar, da coxia do corredor quando passa pela minha mesa – estou a ver quando me salta ao pescoço para cheirar o perfume ou morder a carótida, ainda não percebi bem. Aborrece-me em especial porque fundamentalmente não compreendo. E isso me confunde. E o olhar, sempre o mesmo olhar, ofídio, que me dá uma sensação muito estranha, e forte, de quase medo.

Esta coisa de o homem ser o lobo do outro homem é muito real. Sinto-o, quando ela anda por aí.

10 comentários:

Anónimo disse...

A L. não está de mal com as mulheres. Está é divorciada da vida. Deve sair do caixão apenas para o trabalho para a ele retornar. Conheço algumas L. e entre a compreensão e a saturação vai, de facto, um relâmpago - principalmente quando a ignorância a que a vetamos não é suficiente, ora porque temos mesmo que interagir ora por isso ainda reforçar mais a sua frustração. Em casos extremos pode-se sempre insultar, exportar, demitir( ou promover abaixo-assinados para o efeito), exterminar.
Claro que nada disto se pode fazer mas podemos sonhar e insultar baixinho para afugentarmos a onda má e, já agora, comer uma deliciosa fatia de bolo de chocolate daquela confeitaria bracarense que desconheço. Não resolve mas alivia:)

Joana disse...

Comboio,

Tens razão. E às vezes é tão fácil divorciarmo-nos da vida!...


Jinhos.

P.S. Não é confeitaria, é livraria, a Centésima, e tu tens que conhecer. Ambos. :))))

Ouriço-Cacheiro disse...

"Ls" há muitas, tantas que a boca fica amarga só de pronunciar... mas há também todo um restante abecedário que nos faz feliz em pequenas coisas, verdade? Olha o J!

Joana disse...

Ouriço,

Sim, é verdade. E a começar no 'A'... ;)

(e não, não é troca de galhardetes.)


Jinhos.

Oásis disse...

Põe o ipod :) (ia fazer o trocadilho linguístico mas... pronto, vou fazer na mesma: "põe o ipod e pode ser que ela desapareça", eheheh, é mais forte do que eu, ehehehe).

Jinhos gandes!

Joana disse...

Marisa,

Aha! Por acaso, nada mal pensado!:D

Mas já desapareceu, na verdade desapareceu assim que percebi o que a importuna e que não tem nada a ver comigo em específico, mas com ela. E ainda bem.

Her problems, her concerns. :))))

Jinhos.

Janaina Amado disse...

Ah, JJ, este último comentário seu foi perfeito - ia dizer-lhe exatamente algo assim, que L. a incomodava provavelmente pq. fazia alguma relação dela com você. Ao concluir que não, ela nada tem a ver consigo, pronto: tirou-lhe todo o poder que lhe havia dado!
Já pro caixão, L.! :-))
PS - Gosto da sua escrita

Joana disse...

Janaina,

Ora nem mais. ;)

Muitas vezes sofremos (horrores) por nos colocarmos no centro de questões que pouco ou nada têm a ver connosco. Não há nada como ter a visão de conjunto para realmente percebemos de que se trata de questões individuais fora do nosso âmbito.

(Obrigada pelo seu P.S.! É bom saber...)

Jinhos.

Maria Rita disse...

O que não falta é mulheres/raparigas assim! E o estranho é que o fenómeno só acontece no feminino, pelo menos aparentemente! Mas o que é facto é que apesar de ela ´perturbar o teu trabalho, te levou para mais uma magnífica descrição, Joaninha. :)


Um beijinho*

Joana disse...

Frida,

Pois é. Bom, bom é conseguirmos transformar estas coisas inqualificáveis em coisas boas, agradáveis de ler pelo menos. ;)



Jinhos.