quarta-feira, agosto 19, 2009

Miúdos (II)


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Aos 20 anos vivia aqui, 36 Rue du Montparnasse, a escassos cinco minutos a pé do Jardin du Luxembourg, a doze, da Sorbonne. Eu, cento e cinquenta outras raparigas e três freiras. Além de nós havia a equipa do catering, encarregue dos pequenos-almoços – e do melhor sumo de toranja do universo!, almoços – chez nous ou à porter, Mameselle? – e jantares – invariavelmente chez nous – para toda a gente. Além da equipa do catering, havia ainda duas senhoras que ficavam na Recepção encarregues de perto de uma centena de chaves de quartos e encarregues, sobretudo, de abrir e fechar o portão da entrada, trezentas vezes por dia, mais coisa, menos coisa, mas sempre com o mesmo Voilá! cantado em intervalo melódico singular e seguido de sorriso, uma; sempre com o meu nome Johaná!, aspirado mas sem intervalo melódico, a inclinar-lhe o rosto, com doçura, para a esquerda, outra.

Ter vivido aos 20 anos em Paris, viver em Paris em qualquer idade, é um luxo! Eu sei, toda a gente faz questão de frisar, sorriem-me que sorte!, e eu toda desconfortável, quase a querer desculpar-me o não partilhar da efusão de toda a gente. Acho que toda a gente pensa que eu sou como toda a gente e que por isso terei passado pelas experiências, incríveis, de toda a gente aos 20, de toda a gente em Paris, de toda a gente que é toda a gente, não importa quando, não importa onde. Mas não. Ou nem tanto.

Tinha um amigo rastafari, no qual esbarrei um dia por acaso antes de uma aula de Literatura, francês, estou em crer que, só de nome – chamava-se Luc – e que, primeira coisa depois de saber que eu era Erasmus e de Portugal, me deu o maior abraço de todos os abraços do mundo, que ele próprio tinha feito Erasmus em Lisboa e que ia voltar – num Português notável! – porque Portugal não é Lisboa – e foi aí: ficámos amigos. E duas únicas amigas: a Claire e a Yseult, as miúdas que se sentavam sempre na mesma mesa que eu ao jantar. A Claire passava os dias sentada muito próximo das pirâmides, perdão do Centre Georges Pompidou, a desenhar gente – era de Belas Artes – e queixava-se do quanto essas eram as suas aulas mais difíceis. Eu ria-me – pensava na minha Semântica Latina e Síntaxe Grega e ria-me. A Yseult, já não me lembro que fazia a Yseult, sei que me achava graça desde aquela primeira vez em que fomos apresentadas e eu, antes de mais nada, t’as un Tristan?, antes de rir, corou, mas depois que sim que tinha, mas não era Tristão, que eu era engraçada, que nunca ninguém lhe tinha feito essa pergunta, nem em Versailles – de onde eram ambos – nem ali em Paris e no entanto. E eu ria-me a pensar se fosses Joana em Portugal!..., não há Joana que não tenha ouvido, ziliões de vezes, até ao nojo, o Joana come a papa antes ou depois do Joaninha voa, voa.

Guardo de Paris uma imagem muito viva, não da Torre Eiffel, não da EuroDisney, não do Louvre, não do Sacré Coeur, não de Montmartre, não dos Champs Ellysés, não da Place de Vendôme, não das Galleries LaFayette, não da Opera, não do tudo que se possa imaginar Paris é e será de facto..., guardo de Paris uma imagem viva de gente. Destas pessoas que me encheram os dias do melhor da vida e de outras menos felizes no que de si me deram. Mas guardo sobretudo a imagem viva da gente dentro de um autocarro. De uma senhora de setenta anos que tem que desembainhar um cartão a atestar-lhe a idade para que se lhe ceda um assento. De uma senhora de meia-idade que lê. De um senhor de meia idade que lê. De pessoas jovens que lêem. De adolescentes que lêem. De crianças que lêem. Das Confessions do Rousseau, do Candide do Voltaire, da Madame Bovary do Flaubert, do Germinal do Zola, da Andromaque do Racine e de tudo o que consegui apanhar do Rimbaud, que acabei por ler na íntegra e sem tradutores traidores pelo meio, nos meus muitos quatro minutos de viagem de autocarro da Rue du Montparnasse à Sorbonne todas as manhãs – à tarde vinha a pé para atravessar o Luxembourg e dar, pelo caminho, os restos do panini do almoço aos patos.

Recordava isto ontem ao fim do dia quando observava, no comboio, Paris numa família de três: a mãe a acabar o Une morte en Venice do David Silva e a discutir com o marido as notas finais do autor; o pai a meio do Périple du Ciel, do Clézio, a discutir com a mulher a generalidade da obra do Clézio; e o pequenote, não lhe daria mais que seis anos, a ler não consegui bem ver o quê. A meio da viagem dos três, o pai ao filho, Julien, comment il est? Ao que o filho, seis anos de gente, segura, fundamentadamente, e num registo tão impressionantemente adulto, emite uma série de juízos que esqueço, retenho apenas o cerne: ‘il est passioné’. E todos os connectores discursivos: en fait, d’ailleurs, cependant, néamoins..., seis anos de gente!, néamoins, seis anos de gente, passioné, seis anos de gente, d’ailleurs.

“Et voilá, c’est ce que je dis, la lecture c’est ça: passioné. Et passionant”. – remata o pai a sorrir e, suspeitando da atenção que lhes prestei toda a viagem, procurando também em mim alguma forma universal de assentimento. Sorrio-lhe de volta, e penso, pode-se sair de Paris para férias, mas parisiense que é parisiense, dos seis aos oitenta, é, será sempre, em qualquer meio de transporte público, ávido leitor.

E ainda bem.
* Os google-maps são o máximo! As coisas que uma pessoa descobre...

10 comentários:

Doppelganger. disse...

Como tu te deves sentir mais preenchida com Paris, e com essas tuas viagens e experiências pelo teu mundo estudantil!

Beijinho*

Joana disse...

Pedro,

Viajar é sempre bom! (E quando se é estudante tem outro encanto...)

;)



Jinhos.

Joana disse...

E sim, Pedro, estou. :)))))))))))))


(Logo falamos.)


Jinhos.

Vanessa disse...

how i wish... :)

Joana disse...

Vanessa,

Pois. My thoughts exactly. :)))))






Jinhos.

Maria Rita disse...

Que sensação estranha ao ler este belo texto...só de pensar que Roma está tão pertinho de mim... :))))

Um beijinho Joana*

Joana disse...

Frida,

Ora nem mais. Também pensei nessa tua contagem decrescente quando por fim acabei de escrever e o li.

:D

Que Roma te traga tudo o que Paris me trouxe (de bom) e mais! ;)


Jinhos.

Janaina Amado disse...

Lindo texto, JJ. Também adoro Paris. Nunca vivi lá, mas visitei a cidade em diversas ocasiões - a cada vez descobrindo novas coisas -, e tenho uma filha que lá habita. Abraços, obrigada pela viagem francesa.

Anónimo disse...

Adorei!!! Quero voltar a Paris esta noite. Lindo!

Joana disse...

Janaina,

Viver lá é muito diferente de visitar, uma opção a equacionar, porque não?, nem que seja por uns tempos! ;)

Testaravida,

A tua situação geográfica parece-me privilegiada. Houvesse um fim-de-semana maior, atravessava logo o Canal.

Jinhos a ambas.