Ossos longos, ossos chatos, ossos curtos, ossos irregulares. O osso é uma estrutura exclusiva dos animais vertebrados - a única que lhe sustenta o corpo e apoia os músculos para o movimento. É osso o que protege cada órgão vital do nosso corpo: o crânio protege o cérebro, as costelas, o coração. SUB-STANTE.
sexta-feira, dezembro 19, 2008
O post de Natal
terça-feira, dezembro 16, 2008
No comboio (V)
A minha irmã mais nova acha que eu devia escrever um livro Do comboio. Coisas extraordinárias acontecem-me no comboio. Coisas extraordinárias acontecem-lhe quando vai comigo no comboio. Só quando vai comigo, só quando vai comigo, teima ela.
Não vou escrever nenhum livro Do comboio. Escrevo por cá as coisas que me vão acontecendo antes e depois do comboio. E isso chega. Escrevo por cá para não me esquecer. Escrevo por cá para que me leiam, mas mais para não me esquecer, sobretudo para não me esquecer.
Todos as manhãs entra no meu comboio cerca de cinquenta miúdos, mais de metade dos quais são graúdos, andam certamente no liceu. São os miúdos de Lousado, da Trofa, de Famalicão... que frequentam as escolas, externatos e afins, de Braga. Com o passar dos meses, as mesmas caras a entrarem nas mesmas paragens, os mesmos miúdos a passarem por mim com o sono a escorrer da cara, o gel do cabelo, os mesmos a sentarem-se próximo e a conversar para sacudir o sono, (re) conheço-os. Quando calha de ter acabado o livro que estava a ler, dou comigo a prestar atenção, janela fora, olhar dentro, dou comigo a ouvir-lhes preferências e inclinações, horários, feitios de professores, rotinas diárias de explicações e treinos e sms tardias.
Há três miúdos que entram em Famalicão que, não sei porquê, sabem que eu existo. Sabem que eu existo, tanto quanto eu sei que eles existem. Dois rapazes e uma rapariga. Acho que os dois rapazes são irmãos, porque apesar de muito diferentes, têm no rosto os mesmos traços exactos. Um, o mais alto e mais magro, é muito falador – passa a viagem a falar com a rapariga. Excepto há dias. Há dias sentaram-se os dois à minha frente e, muito caladinhos, prosseguiram viagem até Braga. Nesse dia, silêncio. E eu percebo bem porquê. Ao meu lado vinha uma senhora toda conversa. Ela era a música clássica que estudou, o canto coral que cursou, o Maestro Vitorino de Almeida que era vizinho em Moledo, a Amália que viu em Viana. Toda conversa. Eu a sorrir, a replicar na medida do possível. Os miúdos a olharem um para o outro. E silêncio. Para que toda a conversa prosseguisse. Nesse dia à tarde tive que regressar ao Porto mais cedo e no comboio em que fui lá estavam os três, os três a olharem para mim, a surpresa igual em três pares de olhos diferentes, o miúdo alto e falador a sobressair, a sair da surpresa e a cumprimentar-me com um sorriso largo, bonito, que não repliquei. Não estava à espera.
O outro miúdo, o mais baixinho, está sempre na sua, fala pouquíssimo, sorri ainda menos, dá-se uns ares de eu-é-que-sou-...-portanto. Portanto. Sexta-feira passada, não, quinta, quinta ou sexta, possivelmente quinta, sim, quinta, porque tinha o Pedro à espera. Quinta, saio à pressa do comboio, com o frio mais frio que pode estar em Braga às oito da manhã e o quispo mais quentinho e mais escorregadio de todos os quispos que tenho, a impedir a minha mala de permanecer mais que cinco segundos no ombro. Levanto-me para sair, coloco a mala ao ombro, pela enésima vez, e pela enésima vez ela desliza, o Pedro à espera e ela a teimar, ela a deslizar. Bem, toda a pressa é inimiga da paciência, vai daí, toda a violência do mundo, a que é possível às oito da manhã, para a colocar definitivamente lá em cima, no ombro. Toda a violência do mundo mais o peso da mala, aí uns três (quatro, cinco???) quilos, a resvalar para, volto-me, o ombro do rapazinho que não fala, sorri ainda menos e se dá uns ares de. “Desculpa.” Pedi desculpa imediatamente, reflexivamente. Pedi desculpa com um ar envergonhado, preocupado. Pedi desculpa e a vergonha e a preocupação passaram-lhe a mão dois instantes no ombro. Sorri-lhe. Desculpa. Ele, nada. Ficou parado a olhar para mim. Nada, surpresa, rancor, constrangimento, nada. O pedido, o gesto, o sorriso. Nada. Deu-se os ares de. O costume.
Fui-me embora, e, não o vendo assim à primeira, liguei ao Pedro que afinal não tinha à espera – adormecera. Possivelmente num soninho doce e reparador como o meu desta manhã no comboio.
Esta manhã só veio de facto à luz às 7h 50m. Incrível. Foi quando acordei realmente. 7h 50m ou Lousado ou Trofa ou quando o comboio começa a encher-se de mochilas de todas as cores, risos altos, cabelos esticadinhos, trabalhos de casa por fazer, trabalhos de casa feitos em cima do joelho, correntes, calças de ganga descaídas, cadernos dobrados no bolso, enfim, miúdos. Acabei de reler o Por quem os sinos dobram no comboio ontem; estava, ainda estou, demasiado ensonada para ler o que quer que fosse hoje. Olho janela fora, geada adentro. Famalicão. Olho porta fora. O miúdo falador não vem. O baixinho só. O baixinho só com a rapariga. Penso no que terá acontecido ao miúdo falador – adormeceria? O baixinho muito falador. A rapariga a responder. O baixinho a olhar-me. Os dois a sentarem-se do outro lado. O baixinho muito falador. Tão estranho, o alto é que costuma. O baixinho a fazer conversas pequeninas com a rapariga. Esta agora, então e os ares? – eu a pensar. No fim de cada conversa, o baixinho muito, muito, um olhar disfarçado para o meu lado. O baixinho muito falador. Uma conversa pequenina que acaba, inspiração, silêncio, expiração, o baixinho muito, muito, um olhar pequenino. Um olhar, muitos olhares. Pequeninos.
Chegamos a Braga. Levanto-me, o Pedro não está à espera, mas estou com pressa. Estou sempre com pressa de manhã, e estes dias, estou sempre com o meu quispo branco também, e até com a mala que sempre desliza. O baixinho levanta-se também. E a rapariga. Levantam-se os dois. Seguem-me ambos na pressa.
Ter dezassete anos é uma coisa muito bonita.
sexta-feira, dezembro 12, 2008
Os pequenos gestos
Quando estou no Porto, na casa dos meus pais que é nossa, minha, enfim. Quando estou no Porto, na casa dos meus pais que é minha, em frente ao plasma ao fim do dia, estes dias, o ruído do aquecedor lembra aos meus pés as mãos quentes de massagens da minha mãe. As massagens, as mãos, o calorzinho, da minha mãe, lembram-me a minha mãe. A doçura, o sabor único, especial, que a minha mãe, desconfio que sem se aperceber sequer, empresta a tudo. E depois vou dormir. Tentar dormir.
Quando estou em Braga, todos os dias, ao chegar à Biblioteca penso quanto-tempo-falta-para, ao subir as escadas penso quanto-tempo-falta-para, ao entrar na sala penso quanto-tempo-falta-para, ao abrir a janela e olhar para o jardim lá fora penso quanto-tempo-falta-para, ao sentar-me à secretária penso quanto-tempo-falta-para, ao ligar ao computador penso quanto-tempo-falta-para o momento em que nenhum passo se ouve, nenhum passo, nenhum barulho, nenhuma forma de, antes do deslizar metálico da fita que separa as nossas salas me dizer a hora dos nossos bons dias.
Quando estou em Braga, todos os dias, estes dias, chego à Biblioteca, subo as escadas, entro na sala, abro a janela, olho para o jardim lá fora, sento-me à secretária, ligo o computador, ligo-me aos amigos, blá, blá, blá, e vamos lá trabalhar que se faz, trabalho, trabalho, trabalho, e aí a meia manhã, por volta das onze ou assim, quando calha de alguém mais ruidoso subir as escadas, rasgando-me o silêncio, e até a fita, quase, um bocadinho, rasgando toda a forma de, no silvo estridente com que afasta a fita, para o lado esquerdo, para subir, para subir cá, para cima. Penso. Tempo. Falta. Quanto.
Quanto tempo perdura um gesto bonito no coração? Quanto tempo perdura um gesto não-bonito no sítio que o aloja e que não é, será, não deve ser, o coração?
Há mais de vinte anos que os meus pés, pé ante pé, mão ante mão, e o meu coração, pé ante pé, mão ante mão, conhecem das mãos, o calor, o calor das mãos da minha mãe. E vai ser sempre assim. Sei. Daqui a vinte, quarenta, sessenta anos, vai ser assim, vai continuar a ser assim. Daqui a vinte, quarenta, sessenta anos, quando me disserem: Define ‘mãe’. E eu: Mãe é um calorzinho nos pés, um calorzinho que vai dos pés ao coração em movimentos circulares de doçura; em suma, Mãe é um calorzinho bom que te enche o coração. (Mamã, falta menos de quatro dias!)
quarta-feira, dezembro 10, 2008
sábado, dezembro 06, 2008
sexta-feira, dezembro 05, 2008
Um dia em que um outro mês vá alto
Se eu disser: ‘Nesta altura do mês’, isso quer dizer ‘neste tempo em que o mês (já) vai alto’, certo?
Apesar de os meses serem feitos de altos e baixos, naturalmente, a expressão ‘Nesta altura do mês’ não quer dizer que este momento preciso que quero descrever é um alto, pois não? É que definitivamente não é um alto. Não é por certo aquela altura do mês em que a lágrima é fácil e a ingestão de chocolate também. É pior. Nem alto, nem baixo, não sei o que é, mas é a altura do mês em que não posso entrar na Zara.
Porque vou logo direitinha ao cabide a meio da loja e gosto de toda e qualquer roupa que lá esteja e depois de o dizer interiormente mil vezes, confirmo com quem está comigo é lindo, linda, conforme a peça de roupa, no plural também, e quem está comigo diz normalmente sim é, mas Joana... é, oh pá como é que tu nunca, então este é o cabide, és sempre a mesma coisa! E é então que o círculo roxo por cima do cabide me entra pelos olhos dentro e aquelas letras grandes, gordas, me cegam pela enésima vez no ano, pela primeira e última do mês. Zara Mum. E o senhor, senhora, menino, menina, conforme a loja e a altura do dia, do mês, em que vamos, a pessoa que está na caixa, ontem era um senhor, – porque é que esse cabide fica sempre perto da caixa em funcionamento? – dá um sorrisinho à pessoa que está comigo e pisca o olho à pessoa que está comigo e ela retribui, divertida, e eu coro e digo vamos embora, faz-se tarde.
Vamos. Quem está comigo a decidir a que loja vamos a seguir – as outras lojas a que costumamos ir não têm cabides do género, só aquela, aquela só! – e eu a olhar para o vazio e daí, quase reflexivamente, para o guarda-chuva que vou arrastando, para os meus sapatos, para o vestido, para ausência de cintura do vestido, para a cintura subida do top do dia anterior, para a ausência de cintura do poncho do outro dia, eu a olhar para o vazio, para o tempo em que comprava a roupa que me encantava, só porque sim, sem olhar a ondes, cabides e círculos; tempos houve em que comprei muita coisa de cabides assim e só quando cheguei a casa é que as letras, magrinhas, da etiqueta me cegaram. Ou iluminaram. Eu a pensar que coisa, este cabide, esta loja, esta altura do mês, porque é que eu, ninguém que conheço, que coisa. Eu a pensar já foi pior, um dia vai passar, um dia por certo, um dia do nada, um dia tal como veio, um dia.
Ontem foi assim.
Mas talvez um dia... Um dia em que um outro mês vá alto.
quarta-feira, dezembro 03, 2008
Se tudo é mau, isso então
Chove. Lá fora e dentro dos meus sapatos e dentro das minhas meias. E dentro do envólucro de plástico em que transformaram o meu guarda-chuva à entrada. Chove nos bolsos da minha mala, ou dos bolsos da mala para o chão, assim é que é. Acho que a maquineta dos guarda-chuvas não embrulha malas em plástico. E é assim que vou chovendo escada acima, sala adentro, pequeninos passos sonoros, ploc, ploc, ploc, os meus pés dois aquários, até chegar ao sítio do costume, à minha janela. Chove dentro dos meus sapatos e dentro das minhas meias, embora agora, que já saí, desci, e os fui secar à casa-de-banho, menos, um bocadinho menos. Entornei os dois aquários sanita abaixo.
Quando está para chover, aí uma boa meia hora antes disso, quando pouco ou nada me faz prever que venha a chover, seja porque me esqueci de ouvir o senhor do tempo, seja porque no dia anterior me vesti para a chuva e só deu sol, uma boa meia hora antes da surpreendente inevitabilidade de chover, num rasgo de particular boa-disposição matinal, lembro-me de vestir uma saia. Fica sempre bem. Tão feminina! Uma saia. Uma saia de Inverno. Vou ao armário, pego numa qualquer, não demoro muito, nisso sou prática – muito prática até – nisso, quase nisso apenas. Escolho a saia, calço as meias que condizem com a saia, calço os sapatos que condizem com as meias e a saia, visto a camisola que condiz com as meias e saia, visto o casaco que às vezes não condiz com nada, mas é quentinho e comprido e provavelmente castanho, e isso chega para me sentir bem.
Antes de sair de casa, começa a chover – é quando estugo o passo e hesito em voltar ao armário escolher umas calças e calçar umas botas e nos entretantos mudar a roupa toda porque, ... definitivamente muita canseira –, prossigo, agarro num qualquer guarda-chuva grande, desligo a luz e saio porta fora. Para a chuva. De encontro a todas as poças de água, a todos os postes e a todas as pessoas de guarda-chuva e mala e filhos e cães na mão. Quando chego a Braga novo drama, outras poças de água, outros postes, outras pessoas, os mesmos malabarismos... Em Braga a chuva é pior: mais densa, mais constante, mais... muita coisa, quase tudo! Aqui, quando chove, não há distância que não se alongue, as ruas que são a subir, inclinam-se mais, as que são a descer, o mesmo, inversamente; eu a lutar contra isso, eu a correr, eu a olhar a saia, as meias, os sapatos e o chão, rios de chuva rua abaixo, eu a correr, o meu pequeno-almoço à espera, tão lá para cima, tão longe! Aqui, quando chove, as pessoas juntam-se muito, eu a tentar furar, fazem uma espécie de barreira, eu a tentar ultrapassar, que, nunca entendi, não é do agrado do vento, não gosta, intromete-se: vira guarda-chuvas, quebra guarda-chuvas, dá-me cabo do cabelo, da saia e das meias e dos sapatos, enfim revira a minha boa-disposição matinal!
Depois chego ao quentinho do sítio do meu pequeno-almoço e o senhor do costume, sequíssimo como se deve sempre estar, sorri quando me dá os bons dias e diz, olhe, menina tem a certeza de que se quer sentar aí, é muito próximo da porta, vai apanhar frio e chuva e eu olho para ele e quero gritar-lhe que toda eu sou frio e chuva portanto não, mas não digo nada e sacudo o melhor que posso a chuva para poder sorrir de volta. Como rápido e saio e atravesso a rua o mais depressa que me permitem os meus dois aquários andantes, ploc, ploc, ploc, sorriso à frente dos olhos, guarda-chuva à frente do sorriso, e quase embato de frente na única pessoa que conheço que tem o olhar mais frio que os meus pés neste momento. Dou-lhe o meu sorriso, os meus bons-dias, o meu sorriso novamente, mas ela não, nada, nunca. Afinal chove, muito, venta, muito também, e anda para aí uma crise e o SLB não chegou ao topo da tabela e o BPP vai pelo mesmo caminho que o BPN e eu, eu apesar de todos os nãos, nadas e nuncas, eu permaneço. Eu. Já disse o quanto chove?
E isso então, se tudo é mau, isso então.
sexta-feira, novembro 28, 2008
Palavra do dia: UBIQUIDADE
Braga
Recital de Poesia "Setembro outra vez"
- Homenagem ao poeta José Manuel Mendes -
pelo Sindicato de Poesia (com a minha amiga Ana Arqueiro), no Museu Nogueira da Silva.
Matosinhos
Lançamento do mais recente
Os Três Desejos de Octávio C.
de Pedro Eiras, na Biblioteca Florbela Espanca.
Queria dizer: Fico. Em Braga. Para o recital da Ana. Para sentir o doce embalo da voz dela e o brilhozinho de estrela que empresta a cada palavra. Queria muito. Precisava até. Neste fim de semana chuvoso e frio. Dentro.
Mas vou a Matosinhos, e vai chover torrencialmente, isto agora é só um chuveirinho, - chove sempre, torrencialmente, quando o Pedro apresenta qualquer coisa, coisas de um outro Pedro..., não? E estando em Matosinhos estarei em Braga também e com a Ana - foi graças ao curso do Pedro que as nossas coordenadas coincidiram e nos conhecemos e tudo e tudo, como ela sempre diz.
segunda-feira, novembro 24, 2008
Imagine-se uma mão. Não, duas. Duas mãos e uma toalha. Duas mãos que seguram uma toalha. Lavada. Acabada de passar a ferro. Toda lavanda.
Imagine-se duas mãos que seguram uma toalha com esmero: o cuidado do afecto e a ciência dos anos.
Imagine-se um alguidar. Cheio. De água quente. Um alguidar que fumega à direita de uma cadeira no centro de um quarto.
Imagine-se o quarto. Fumo, água evaporada e lavanda. E uma janela aberta. Fumo, água evaporada e lavanda, misturados em todo o espaço do quarto. E uma janela aberta. E uma luz que vai entrando com um frio, enquanto é dia.
Imagine-se a cadeira. Sem costas, nem apoios: um banco. No centro do quarto. Frente à janela.
Imagine-se então a pessoa sentada. Sem costas. Na penumbra: um vulto. Um contorno só. Dor. No centro do quarto. Frente à janela.
Voltemos às mãos. Duas mãos torcem a toalha quente. O cheirinho a lavanda suaviza o ar. Duas mãos passam-na no pescoço da pessoa sentada, devagar, na nuca da pessoa sentada, um calorzinho bom, nas costas da pessoa sentada, pressionando, nos braços da pessoa sentada, parando, no peito da pessoa sentada, com muito, muito, muito, cuidado, no ventre da pessoa sentada, pacientemente, nas pernas da pessoa sentada, nos pés da pessoa sentada, sempre. Sempre, até a pessoa sentada, a dor, adormecer, até o calor deixar o alguidar, até a luz deixar o quarto, até o frio obrigar a que se feche a janela. Duas mãos. Duas mãos para uma dor.
quarta-feira, novembro 19, 2008
De outonos e memórias
Ontem estive com o Pedro em Santiago.
Santiago é, como a Bélgica, dos poucos lugares em que me sinto totalmente em casa, estando fora de casa. Podia viver em Santiago, ou na Bélgica, o resto da vida e, independentemente de tudo, seria feliz, tenho a certeza.
Estava chuva e frio – mais frio do que cá –; fomos almoçar ao chinês – bem pior que todos os chineses de cá –; perdi-nos umas quantas vezes – nada a que a minha des-orientação crónica não nos tenha habituado... já...
Fomos para a Biblioteca. Pelo caminho mais longo, mais cansativo e mais feio – não me lembrava do do costume. Mostrei-lhe os cantos à casa, ou à Faculdade, ou à Biblioteca – objectivo da viagem cumprido. Trabalhámos como doidos a tarde toda.
Regressámos. Pelo caminho mais curto, mais bonito, o meu, o do costume. Descemos a rua. Devagarinho. A ouvir a banda sonora do ‘Once’ e a tentar, o Pedro a tentar manter a nossa conversa. Então e Maugham, já leste, eu, de todos os escritores por que razão, eu a não querer, sim, O Fio da Navalha, The Moon and Six Pence, o Véu Pintado e... e A Servidão, eu a não querer mais, eu a não me esforçar por. O Pedro a não conseguir manter a nossa conversa, Joana, importas-te que paremos aqui um pouco, tenho de tirar uma fotografia a isto, não posso deixar de; eu a não me importar, eu já sabia que, naturalmente, tira as fotografias que quiseres, vou sentar-me para ali.
Longe. Bem no meio daquele fim de tarde todo Outono de folhas e sombras e recordações de tempos antigos. Eu e a música. Longe. Ali, no meio do parque. Longe. Um mundo não chega, um ano não chega, para apagar o Outono da memória. Ele dizia que os beijos dele eram melhores no Outono – viciavam – e que achava que os meus olhos lhe lembravam o Outono e não via tristeza nas folhas que voavam ao vento no Outono, nem no frio do Outono, nem nas tardes cinzentas de Outono passadas na companhia de uma certa rapariga de olhos castanhos, cor de Outono!... Depois ria-se e acrescentava que quando mudasse a estação, haveria de proclamar o mesmo. "Mas no fundo tenho razão." - concluía. "Razão? Acerca de quê?" "Acerca dos beijos!"
Imagino que, ontem à noite ao chegar a casa, o Pedro terá mostrado à Ana as fotografias daquele parque bonito, bem à saída da nossa Faculdade homóloga em Santiago. Imagino que lhe tenha falado da sua surpresa perante o meu desconforto em relação ao Maugham e das suas suspeitas de que as minhas lágrimas de ontem não teriam sido exactamente por causa da magia do “Falling slowly” e do “When your mind is made up”. Mas foram.
quarta-feira, novembro 12, 2008
“I can’t go home. Tessa was my home.”
Há dias em que me apetece fazer um intervalo para ir fumar; arranjar uma janela, uma varanda, uma janela que se abra para uma varanda, para fazer pequenos círculos de fumo e frio, isso. Há dias em que me apetece dizer palavrões; arranjar um sítio, sem gente, sem ecos, para os gritar à vontade. Há dias em que me apetece saltar para o céu do topo de um prédio de muitos andares; poder sentir minha, a liberdade desse voo maior.
Esses são os dias, os momentos de cada dia às vezes, em que quero ir para casa. Aquela casa mais dentro, que recrio nos espaços e nas pessoas que vou habitando, nos locais e nas pessoas por que vou passando; aquela casa que reconheço tantas vezes em lugares e pessoas tão diferentes; aquela casa que sinto no abraço, ou no sorriso, que sei só, só, para mim.
sexta-feira, novembro 07, 2008
A ousadia da esperança
Há uma coisa que se pega, se cola a nós, quando se vai para os EUA e se volta a casa. É uma espécie de americanite aguda que faz com que se compare coisas absolutamente incomparáveis como os serviços, a produtividade, as infraestruturas... de lá com o que quer que se passe e se faça (ou não) cá. Por exemplo agora, neste momento preciso em que estou na Biblioteca e olho para este dia outonal, lembro-me de que em dias assim numa outra Biblioteca, a da minha Universidade sulista, havia candy, vulgo snickers e mars, totally free a cada recanto, que o Outono dá sono e é triste e, tal como em bom Português: tristezas não pagam dívidas!
É, parece-me, o reverso do que acontece com quem fica, com quem nunca foi, e é anti-americano a cada tirada, ácida, a cada ironia, a cada opinião, a cada juízo de valor, a cada pré-conceito. E de pouco vale explicar-se que é bom viver num país que aposta em nós, num em que somos reconhecidos pelo mérito, o que fazemos antes do que temos, antes de quem conhecemos, antes de onde vimos, antes de quem somos.
Penso muitas vezes no american dream. O dream é american porque só o podia ser. E o dream deles não é o nosso sonho. Não. O nosso sonho é cinzento como este dia em Braga, e tem limites, os das nossas possibilidades, os das nossas circunstâncias e condições. Quando não tem limites, o nosso sonho não é sonho, é devaneio. ... O dream deles não, o dream deles é uma ideia a que a força que é determinação e persistência dá forma na prática. O dream deles é coragem, crença, a reunião, esforço, tudo bem alicerçado num fazer, o fazer sem medo, o ousar fazer. E essa foi a grande lição de um país que se pensava depauperado. De tudo.
Daqui a uns tempos devo regressar aos EUA. É sempre bom regressar aos lugares onde sabemos ser certa uma parte da nossa felicidade.
quarta-feira, outubro 29, 2008
Uma canção, um poema, uma flor
No décimo primeiro ano fiz parte do jornal da escola. Éramos uma equipa de seis: a Lena, a Cátia, a Cláudia, a Nisa, o Márcio e eu, todos muito certinhos, cada um encarregue da sua secção do jornal, eu estava encarregue das etimologias, lembro-me bem disso, a Lena escrevia o Editorial, a Nisa qualquer coisa sobre Ciências, o Márcio tinha a seu cargo o grafismo, a Cátia e a Cláudia não recordo, mas quase aposto que seleccionavam os textos para publicação, porque tinham ambas grande gosto pela leitura e alguns dotes literários.
O jornal foi uma grande coisa para mim, que nunca fui de amizades fáceis, porque permitiu o travar conhecimento com a Nisa e o Márcio, das áreas das Ciências e Informática, eles que eram amigos das minhas amigas Cátia e Cláudia. A Nisa e o Márcio eram namorados. O Márcio era o presidente da Associação de Estudantes lá da escola. Era do décimo segundo ano e impressionava toda a gente com o seu brio e profissionalismo na Associação. Só muito mais tarde é que soubemos que ele era portossantense – uma espécie de alentejano cá do sítio – mas nem isso conseguiu fazer mossa à reputação do rapaz que se dava bem com toda a gente – quando não estava com a Nisa, fazia uma perninha na rádio da escola – quando não estava com a Nisa, tocava guitarra, naturalmente… para a Nisa.
Certo dia, devia ser o aniversário deles, mas não já sei ao certo, no intervalo grande, o Márcio calou a rádio da escola, para tocar, ele próprio, e cantar, para a Nisa, o More Than Words dos Extreme. E acho que não há dezasseis anos que sejam imunes a uma manifestação tão bonita. Os meus, pelo menos, não foram. E passei o que restava da adolescência a sonhar com um More Than Words só para mim. Depois os Extreme passaram de moda, transformei o More Than Words em canção, No teu Poema, E Depois Do Adeus… Depois o More Than Words tornou-se piroso, a canção, qualquer canção que grita que é nossa em cada palavra e em cada silêncio… piroso. Depois ocorreu-me poema. Um poema. Mas um poema custa. As palavras inteiras são difíceis, algumas, as meias palavras, mais fáceis, mas pouco claras e, que digo?!,... já ninguém escreve poemas! Chega a ser mais piroso que… o More Than Words dos Extreme! A adolescência acabou. E com ela, as canções e os poemas e as flores que se põem no cabelo e duram uma tarde de sol. Acabou a adolescência - já disse.
Parece que logo há concerto dos Extreme e eu, se pudesse, se tivesse dezasseis anos, ou melhor, se ainda tivesse a sorte de sentir, pensar, viver, adolescente, ia até lá. Não vou. O Márcio não vai. Continuou com a Informática – foi para o Técnico, e com a guitarra – encontrei-o algumas vezes em Braga quando ia aos Festivais de Tunas. Sem a Nisa. A Nisa não vai. Continuou nas Ciências, é Enfermeira, ainda há tempos nos cruzámos no Funchal. Sem o Márcio. Eu não ia, não vou. Mas a música fica por cá.
quinta-feira, outubro 16, 2008
O tempo de casa
A Natalie é da Bolívia, na realidade chama-se Natália, e dizia-me isso para justificar uma ausência de dez dias em que ia visitar a filha a NY. A Natalie é da Bolívia, mas apenas de nascimento, que aos dezoito veio para os EUA e aos vinte casou com um americano e aos vinte e três veio morar para o Texas onde teve a filha e nunca mais, desde então, regressou à Bolívia, nem quer, nem quer, mais de cinquenta anos volvidos. O nome diz tudo. Os nomes dizem sempre tudo.
E a Natalie também, entre uma aula de ioga e o lanche, banana e iogurte, que comia nas escadas antes da seguinte, a Natalie dizia-me, muitas vezes, muitas coisas.
A ideia do quality time with family and beloved ones é como a Natalie, muito americana; já o facto de os pais serem como os filhos na temporaridade em que estão connosco soa-me muito a América Latina no seu melhor: herdeira de Espanhas, de sextas depois do almoço, Portugais de almoços de Domingo em família e Itálias de padrinhos (e, bem lá atrás, do paterfamilias...)
Estou em casa. Estou na casa dos meus pais – assim é que é. (Com o tempo fui cultivando muitas casas e nenhuma é mais casa que outra, que eu sou eu, eu apenas, eu feliz, em todas.) A única diferença entre esta casa onde escrevo agora e todas as outras é o tempo. O tempo de casa.
Medem-se os anos, os meses, os dias, as horas, os minutos. Mas não é desse tempo-medida que falo. O tempo de casa, desta minha casa, é o tempo dentro do tempo que se mede em horas e dias. Aquele tempo mais dentro, aquele tempo que demora um beijo ou uma conversa ou um sorriso.
O tempo de Domingo, por exemplo. Domingo de manhã, bem cedo, às nove, vamos à missa. No fim, passamos pelo mercadinho da paróquia, depois, o meu pai lembra-nos do café, tem que se ir ao café, tem que se ler o jornal, (e... tem que ser no sítio do costume porque temos um sistema muito próprio de ler o jornal os três – na realidade, esquartejamo-lo: cada um lê primeiro a secção que lhe interessa, depois vamos rodando, mas no fim, manda o civismo, damos-lhe a ordem costumeira –) escusado será dizer que nisto se chega à uma da tarde. Às vezes, vamos buscar o almoço a outro sítio mais ou menos do costume, outras vezes faço-o eu, ou a minha mãe, ou o meu pai, conforme.
Também há o tempo dos fins de tarde. É o tempo que começa quando a minha mãe chega do trabalho, muda de roupa, põe um agasalho e diz-me que está na hora. As horas fazem o tempo. Está na hora daquele tempo só nosso para conversar. Do tempo em que a vida, nos seus nadas e nos seus tudos, nos entretém e aflige e diverte. As melhores tardes da minha vida são estas, em que a minha mãe deixa por instantes os seus lavores para me espreitar por cima dos óculos e começar a sua gargalhada típica ou dizer aquela palavrinha ou lançar aquele desafio. E depois cai a noite e vamos jantar e...
O tempo desta minha casa é o tempo dentro do tempo que se mede em horas e dias. Aquele tempo mais dentro, aquele tempo que demora um beijo ou uma conversa ou um sorriso.
Entre o tempo para trabalhar e o tempo para estar com os meus pais, o tempo em faço uma compota – é Outono – e o tempo em que saio com algum amigo – matar saudades é preciso – não há quase tempo para escrever. E quase não havendo tempo para escrever, não há novidades por cá, apesar de as haver sempre. Quase não havendo tempo ... voilá!
quarta-feira, outubro 01, 2008
1 de Outubro - Dia Mundial da Música
A Orquestra de Câmara Portuguesa, agora em residência no CCB, esta temporada estreia-se com um programa dedicado a Holliger, Schumann e Brahms.
e maestro titular, Pedro Carneiro.
PEDRO CARNEIRO direcção
PROGRAMA
-Heinz HOLLIGER (n. 1939)
Ostinato Funebre
-Robert SCHUMANN (1810-1856)
4.ª Sinfonia
-Johannes BRAHMS (1833-1897)
1.ª Sinfonia
Gravação
DEVIDO À GRAVAÇÃO DESTE CONCERTO, PEDE-SE AO PÚBLICO
QUE COMPAREÇA NA SALA 15 MINUTOS ANTES DO INÍCIO DO ESPECTÁCULO.
NÃO É PERMITIDA A ENTRADA APÓS O INÍCIO DO CONCERTO.
segunda-feira, setembro 29, 2008
Um travo doce a laranja com açúcar
Às vezes, como agora, sinto muitas saudades dos meus avós. A maior parte das vezes é de um deles apenas. Mais do meu avô, mais da minha avó, depende. Depende. Não sei bem de quê. Mas depende.
Quando chega o Outono lembro-me da minha avó. Lembro-me das tardes de chuva grossa da Madeira dos meus seis anos, ping, ping, ping a gotejar da vinha para o nosso quintal. Lembro-me da minha avó nas tardes em que, depois de uma manhã inteirinha de copianço descarado de tudo o que fazia o Manuel, tinha que o ouvir queixar-se do meu descaramento aos pais a duração inteira da boleia que sempre me davam, fizesse chuva ou sol. Lembro-me da minha avó nessas tardes a descalçar-me as galochas cor-de-rosa para ir almoçar. Era um custo! Lembro-me da minha avó no Outono por causa dos nossos almoços ao som da chuva e dos meus quadradinhos de laranja com açúcar para a sobremesa. Não há Outono que não me saiba à laranja com açúcar, não há chuva grossa que não me lembre os meus almoços da primária com a minha avó.
Ela perguntava-me, então e o que fizeste hoje na escola, e eu dizia: um ditado, contas e um desenho; e quantos erros tinha o ditado, ela continuava, e eu: oh tinha um; amanhã será melhor, dizia-me, e eu: sim, talvez, não sei, só o Manuel tem zero erros, mas também o Manuel lá na Venezuela andava já na terceira classe, eu nunca andei na terceira classe, eu só fui para a escola o ano passado, e o Manuel tapa muito o trabalho dele para eu não ver, está sempre com o braço por cima da folha e eu assim não...; não te preocupes com isso, fizeste também um desenho, desenhaste o quê, desenhei uma galinha, e a professora colocou todos os desenhos na parede e então pôs o meu desenho exactamente ao lado do desenho do Manuel e assim não dá porque se vê perfeitamente que a minha galinha é igual à dele, as duas, lado a lado, exactamente iguais, não é justo. E a minha avó ria-se. E eu não percebia, mas também me ria. E a comida escorregava melhor assim e o tempo passava rápido, ao contrário da chuva.
O Manuel mudou de escola no final desse ano, quando apenas eu e ele tínhamos zero erros no ditado e os meus desenhos começavam a diferenciar-se dos dele. Acabaram-se os queixumes, as boleias, os acenos agradecidos da minha avó aos pais dele, acabou-se a nossa competição. Não acabou nunca o apoio e o interesse da minha avó por tudo o que sempre fiz na escola. E acho que é isso que está no travo doce de laranja com açúcar de que sinto tanta falta a cada Outono. A minha avó morreu há precisamente dez anos na semana em que entrei na Universidade.
terça-feira, setembro 23, 2008
Ai, o tom!
Não gosto de talheres, pratos e copos de plástico. Não gosto de esferográficas que não sejam bic ou molin. E não gosto de fita-cola.
Não gosto. Se puder, como outra coisa, mais rápida e menos saudável até. Se puder, escrevo a lápis, ou com a caneta bic ou molin – vermelha, verde, preta, que tiver. Se puder, meto a prenda num envelope de papel ou num saco de tecido, esqueço o papel de embrulho.
Tenho muito a impressão de que a minha geração é a dos plásticos de comer e para comer, a da primeira coisa que se apanhar para um rabisco mais importante na palma da mão e muito, muito, muito, a da fita-cola. Para tudo. É certo que não é coisa bonita, mas, transparente, quase nem se dá por ela e faz bem a sua função: cola. Cola até daqui a nada, até à noite, até amanhã, até depois, até o dia em que em que se rasga o papel na busca do conteúdo.
Este fim-de-semana, ao falar ao telemóvel com uma amiga, não passou despercebido a outra, durante a minha breve chamada, o meu tom de voz algo alterado, melífluo. Disse-me. E eu não tive muitas palavras. Pois. Sim. De facto.
Disseram-me um dia que há palavras que juntamos apenas para algumas pessoas. Por acaso junto muitas palavras, porventura iguais, para mais, muito mais, do que algumas pessoas, felizmente. Mas digo-as de maneira diferente, muito diferente, espero, conforme a pessoa a quem me dirijo, especificamente. Era esse o caso.
Há pouco mais de meia hora, na minha hora indecente de almoço, passei pelo centro de Braga e detive-me numa montra de uma loja por que já não passava há muito tempo. Ainda lá estava algo que cobiçava desde essa altura. Sem pensar muito entrei, dei as boas tardes e logo veio um senhor – que me pareceu ser o dono, marido da senhora que estava no outro balcão – que se encaminha para mim, muito profissional. Perguntei o preço, inusitadamente barato, pedi para ver, sorri, disse que ia levar. Muito bem, respondeu-me o senhor, muito profissional, novamente. Abre uma gaveta tira uma caixa, abre outra tira algodão, coloca-o sobre o algodão, fecha a caixa. Distraio-me. Abre o armário, tira papel de embrulho, não é preciso, é para mim, inclinei-me para dizer, não disse. Não quis desconcentrar o senhor que media e dobrava e cortava o papel para embrulhar. Sem pressas. Olho para os lados à procura do fim do processo, da fita-cola. Não há. Abre outro armário, um carro de fita. Eu a olhar para o senhor e para a fita, eu a prever o que se ia seguir e a tentar reter dentro a emoção. Meio metro de fita enfeita, encima e segura a prenda que me ofereci a mim própria esta tarde. Meio metro de fita que não prende, nem cola, nem rasga, segura. Meio metro de fita relembrar-me-á sempre que as pessoas de há duas ou três gerações têm maneiras extraordinariamente bonitas, singulares, de nos darem um bocadinho delas. Seja na nossa fotografia de há quase um ano que nos colocam à cabeceira, seja a embrulhar uma prenda com fita, seja a pensar num sítio que seja mais do nosso agrado e encaminhar toda a gente para lá, seja a dizer então, muito obrigado, Menina. E é por isso que o tom de voz muda.
terça-feira, setembro 16, 2008
segunda-feira, setembro 15, 2008
O que fazemos aos outros
Somos capazes das maiores atrocidades para com o outro. Por vezes quase inconscientemente. Por vezes, deliberadamente. Algumas vezes porque nos destruíram a nós e não conseguimos ver nosso, nem próximo nem claro, o caminho da felicidade, continuamos o ciclo, vamos magoando, ferindo, massivamente, automaticamente, ininterruptamente.
Também somos capazes das maiores e melhores coisas. Para o outro. Foi o que pensei no outro dia quando tomámos café. Nunca eu seria capaz de te transformar naquilo que és hoje. Nunca eu seria capaz de te transformar. O pior mesmo é que acho que nunca vou ser capaz de transformar ninguém. E gostava. Gostava muito. Um pouco à semelhança do escultor, possuir a preciosa capacidade de moldar, transformar, tornar belo aquilo a que se dá corpo. Gostava. De querer usar essa capacidade. Mas não. Gosto mais de pessoas. Gosto demasiado de pessoas. Tenho em mim tão total e completamente o fascínio da diferença que é valor, que é beleza, que é unicidade, que não vejo defeitos. O gostar, qualquer gostar, cega-me. Não vejo o que pode ser melhor. Quando vejo, peso, relativizo, subestimo; e nunca, mesmo nunca, penso em mudar. Abraço tudo. Quero fazer parte de tudo, por dentro. Não quero a minha assinatura, numa roupa, num relógio, num corte de cabelo, num regime alimentar, num bordão de linguagem, num estilo de vida. Gosto de ver-me no sorriso, no olhar, no toque, no trejeito da boca ou do nariz que eu sei serem só meus, porque vejo nascerem, sempre da mesma forma, sempre renovados, apenas para mim.
Eu sempre soube. Eu sempre disse. Eu sempre te disse. E tu nunca quiseste acreditar, ainda hoje não acreditas, e pensas que cada palavra minha a cada palavra tua é é uma possibilidade, um regresso, uma janela para o tempo em que só tu compunhas o nós que sonhavas letra a letra, palavra a palavra, dia a dia, projecto a projecto.
Eu nunca seria capaz de transformar-te. Eu nunca seria capaz de transformar-te assim. E por isso, também, eu sempre soube. Eu sempre disse. Eu sempre te disse. Ainda sexta-feira te disse.
quinta-feira, setembro 11, 2008
Acho que...
E eu queria muito hoje contar do frio maior que senti na vida, há cerca de dois anos, quando estive no ground zero mas agora, tenho um calorzinho bom no coração, não pode ser.
quarta-feira, setembro 10, 2008
terça-feira, setembro 09, 2008
O triângulo
Os ingleses não conhecem a expressão “triângulo amoroso”, que eu pessoalmente nunca percebi muito bem, também, por associar desde sempre o triângulo à perfeição, à completude. Em Inglês então, a expressão equivalente é: the square in our triangle, o que me parece a todos os níveis mais adequado, faz muito mais sentido, pelo menos.
O Jorge Luis Borges diz que quatro coisas apenas merecem ser tornadas livro, a saber: “... uma luta pelo poder, uma viagem, uma história de amor entre duas pessoas, uma história de amor entre três pessoas...”
Cá para mim, que não vou escrever nenhum livro – hoje, pelo menos – não consigo deixar de ver as vírgulas entre as quatro transformarem-se em sinais de igualdade, precisamente quando a ordem das quatro se baralha e as torna um todo indivisível, uma só, uma única, a mesma, coisa. Mas isso, isso deve ser de não conseguir deixar de as olhar. Ou da minha cabeça.
Todos os dias no comboio, quando me sento e olho para a frente, sinto um calafrio moer-me dentro. Há um senhor de meia idade, que, depois de colocar a sua pasta nos assentos ao lado esquerdo do seu, cumprimenta com um aceno de cabeça uma senhora de meia idade que se costuma sentar atrás dele. Muito arranjada, muito bonita, muito doce, ela tem os olhos maiores, mais escuros e mais tristes que eu já vi. E quando a outra entra, é vê-los, como eu pelo reflexo do vidro, mergulharem, perdidos, naquela tristeza profunda que vem não sei de onde e tudo mina, sempre. Eu a vê-la chegar, todos os dias e a fazer figas, todos os dias, para que hoje seja o dia em que a senhora dos olhos grandes não suspire, não se encolha, não se importe. Perceba o filme tremendo que está a fazer, só ela, dentro da sua cabeça às madeixas loiras. E eu a olhar para a outra e a pensar como é que o senhor de meia idade não vê que a senhora de meia idade, e onde tem a cabeça para se desdobrar em sorrisos e gentilezas e salamaleques para a outra que está longe de perceber que ele, e é tão hirta, tão seca, tão austera... de tão jovem.
E foi assim que me pus a pensar em como a juventude pode ser o lago negro em que os olhos da senhora de meia idade se afundam todos os dias. E foi assim que me pus a pensar que a sensaborona do comboio sou eu também, aos olhos, ácidos, de uma outra senhora, que já deixei de pretender conquistar há muito.
Mas isso é quadrado para uma outra história.
domingo, setembro 07, 2008
Houve um tempo em que eu era naturalmente menina. Nesse tempo, havia algumas coisas que me faziam rir. Muito. Havia poucas coisas que me faziam chorar. Muito. E havia muitas, muitas, muitas coisas que eu não entendia. Nada, disse-me alguém uma vez. Não entendia mesmo. Não por não ouvir, não por não perceber, não por não compreender. O significado de cada palavra, frase, enunciado, acto de fala, era muito claro, mas simplesmente não me dizia nada... Tudo coisas que me passavam ao lado. Sem significarem. Sem me magoarem.
E eu era feliz e menina assim.
Há pouco, com o objectivo de armazenar os ficheiros do computador em discos que não *O* disco, embati de frente com uma data de documentos de texto, a saber, conversas que tive no msn a partir dos EUA, imagine-se! (Sim, que eu, além de passar os dias a pensar no dia de Natal e no 24 de Abril, além de me sentar sempre no mesmo sítio no comboio e no metro, e na Biblioteca, além de comer sempre a horas e quando possível, bacalhau, guardo algumas conversas de msn – as bonitas para além do tempo...) Li uma ao calhas. Começava doce. Eu descrevia o sucesso que o meu arroz-doce tinha feito numa Culture Fair da Universidade. Falei de avós, de "complicómetros", dos meus planos para ir a NY, dei mimo, e – palermice – reclamei um postal...
“Não sei onde encontrar selos.”
Houve um tempo em que eu era naturamente menina. E havia muitas, muitas, muitas coisas que eu não entendia. Nada, disse-me alguém uma vez. Hoje, se não entendo é deliberadamente, esforço-me para evitar que a clarividência me cegue os movimentos. Hoje, se não sei como deixar de ser menina é por não querer largar aquela réstiazinha de esperança no cumprimento das promessas dos outros.
quarta-feira, setembro 03, 2008
O que está escrito na cara
Ele perguntou de uma maneira estranha. Como se soubesse. Como se fosse óbvio. Como se não pudesse ser de outra maneira. Foi desconcertante, declarativo. E isso caiu-me mal. “Não és fumadora, pois não?” E, quase sem tempo para respostas, já me puxava a cadeira e nos estávamos a sentar na parte dos não-fumadores. “Não, não sou.” Sorri, ainda lutei contra mim para a coisa se ficar por ali, mas não resisti. Irónica, o não, não se nota que não sou, a que acrescentei o meu sorriso foi automático. E eu ainda assim a ferver por dentro, aquela assertividade imensa, sonora, que não me deixava. “Não tenho cara disso, pois não?”
“Não. Nada. Tens cara de mamã.”
Cara de mamã. Eu. Eu que, após anos e anos, décadas, de audição atenta de perfis traçados por amigos e menos amigos, acho que tenho um sorriso de dezassete anos, uma covinha na bochecha direita de dezasseis e a doçura natural de quem tem... quinze, vá.
Eu, mamã. Esqueçam o estranho, esqueçam o desconcertante; isto é verdadeiramente avassalador.
Oh. É do vestido. Será? Do vestido? O vestido é daqueles de cintura subida. É azul, pelo joelho, é lindo, lindo, lindo, as sabrinas são azuis escuras, também, e têm uma fitinha bordeaux em toda a volta. Não. Não pode ser. Eles nunca reparam nessas coisas.
É porque o ando a ajudar. O Freud explicaria isso muito bem. Na volta, uma terapiazita vinha-me mesmo a calhar. Eu que pensava que estava a ser muito profissional!... Ao emprestar os livros, até pedi para ele tirar cópias. (Porque os preciso de volta o quanto antes.) Ao fazer a listinha dos artigos, nem os elenquei por ordem de imprtância. (Não que não me ocorresse, mas não tive tempo.) Ao aceder a tirar-lhe algumas dúvidas, marquei sempre à hora de almoço. (Para não perder muito do meu tempo, novamente.) Porque é que eu nunca consigo ajudar de uma maneira profissional? Se calhar porque eu não sou o Freud. Mas porque é que eu quando ajudo, mesmo que seja em termos de trabalho, sou maternal? Que coisa!
“Joana, estás a ouvir? Dizia-te que vais ser uma mamã fofinha.” Não estava. Mas “fofinha”, isso sim já era um adjectivo digno; um condiz, pelo menos, com o meu sorriso e a minha covinha e a doçura que dizem que eu tenho.
Estava agora a pensar neste meu almoço de ontem porque ao vir para cá dei de caras com uma série de revistas que davam conta da nova cara da princesa Leti. Nunca gostei muito da princesa Leti. Não consigo ultrapassar aquele “Cala-te, deixa-me falar.” que não concebo de ninguém, nunca, na minha esfera muito pessoal, e, portanto, estranho na boca da então futura esposa do soberano de uma nação. Displicências à parte, cada vez me convenço mais de que o que vivemos fica-nos escrito na cara. E isso parece-me tão extraordinário quanto humano. Um dom maravilhoso. Um tesouro a manter. Em gesto de dádiva, em aberto. Pelo tempo fora.
terça-feira, setembro 02, 2008
Um barquinho de papel
E eis que o Verão chega ao fim de facto. A Faculdade reabriu, os encontros com o Orientador recomeçam, os cafés de fim de tarde no sítio do costume com os amigos abrandam, quase cessam, já não há tempo. A vida flui mais exigente e depressa, muito depressa, agora que é Setembro.
Não se sentou sem antes pedir licença. Sorri-lhe um sorriso muito pequenino, tinha dores e calor e frio, tudo ao mesmo tempo, e, aborrecida, tentava disfarçar tudo muito bem com o livro que tentava, muito em vão, ler. Se tivesse a minha idade, não levava sorriso nenhum porque simplesmente há dias assim, dias em que o sorriso nos rasga a cara em vez de a iluminar. Sorri-lhe um sorriso muito pequenino, o automático a qualquer pedido de licença. Gosto de pessoas que pedem licença. Só as pessoas mais velhas é que pedem licença, já reparei. E eu. Eu também. Porque gosto. É bonito. (De vez em quando ganha-se com isso um sorriso. E os sorrisos são importantes para os meus dias.)
No banco em que se sentou, na generalidade dos bancos, havia publicidade acerca da Red Bull Air Race do próximo fim-de-semana. A CP não terá nenhum comboio ao serviço, blá, blá, blá, blá... Levantou o papel, sentou-se, leu e começou a dobrá-lo. Voltei ao meu livro, às dores, aos calores e aos arrepios. Algures entre isso e uma história das Histórias (belíssimas!) para uma noite de calmaria, há um cheiro que me desperta, um cheiro familiar, um daqueles cheiros muito nossos, só nossos, da infância: o cheiro a tabaco do meu avô. O cheiro a tabaco do meu avô numas mãos, com unhas amarelas do fumo de décadas como as dele, numas mãos ágeis que faziam um barco com o papel da publicidade da Red Bull Air Race.
Um barquinho de papel. Só as pessoas mais velhas pedem licença. Só uma pessoa mais velha pensaria em fazer um barquinho com aquele papel em menos de um quarto de hora de viagem. O meu avô foi quem me ensinou a fazer barcos de papel. Lembro-me bem, estávamos sentados no canapé da rua e ele, pacientemente, dobrava, abria, fechava e depois dizia vá, agora tu, e eu saltava etapas, esquecia-me e ele, sempre paciente, ainda não é essa parte, primeiro dobras aqui para dentro, entendes, vezes sem conta, toda a paciência do mundo a migrar das suas palavras para as mãos. Optou por me ensinar a fazer um chapéu, primeiro. Um chapéu de papel equivalia a metade do processo de um barquinho. Saber fazer um chapéu é portanto meio caminho andado para alguém como eu fazer o barquinho. E eu, língua de fora, a dobrar, a dobrar, agora é que é, agora é que vou conseguir fazer tudo sozinha. Eventualmente consegui. Nunca sairia dali para lanchar ou para o que fosse sem o conseguir. Ele sabia, sabíamos os dois. Ele divertia-se com isso, eu entretinha-me com o desafio.
Ao cair da noite fazia ambos, chapéu e barquinho, com a mesma destreza que ele. E ele sorria orgulhoso e eu sorria satisfeita. E ele punha-me no colo para vermos juntos as cores do dia que acabava e eu apontava o rosa, o azul e o roxo do fim da tarde sem saber que mais de um quarto de século depois seriam estas recordações que me dariam colo e soprariam para longe as dores.
sábado, agosto 30, 2008
quarta-feira, agosto 27, 2008
Onde queremos estar
- Não, não estou.
- Não?! Então, onde queria estar?
- ...
Tenho muito a mania de olhar as pessoas nos olhos quando falo. Tenho muito a mania de achar que isso conforta. Tenho muito a mania de perguntar. Tenho muito a mania de achar fácil fazer perguntas nunca pensando que podem ser difíceis as perguntas que faço tão facilmente. Como se isso garantisse ao outro que a resposta é fácil. E a resposta é fácil. Todas as respostas são fáceis. Especialmente as (mais) difíceis. Difícil mesmo é ultrapassarmos os nossos medos, as nossas inseguranças, a nossa humanidade, ultrapassarmo-nos, e dizermos fácil aquela palavrinha difícil. Ou aquelas. Conforme. Se calhar, tenho muito a mania.
Quando acaba o meu dia, especialmente ali pelas cinco e meia, seis da tarde, doze horas depois de ter acordado, quinhentas construções possessivas depois de termos tomado o pequeno-almoço, quando por fim saio e ao descer a rua, remexo a mala à procura dos óculos de sol, queria muito estar no teu colo. Ou naquela zona minha entre o teu ombro e o teu peito. Ou dentro da tua mão. Ou de passagem pelo teu pescoço. Ou a meio centímetro da tua cara.
Como se levar comigo uma impressão de ti fosse vital, me assegurasse o ar até ao teu sorriso meu do dia seguinte, de todas as manhãs.
Onde queremos estar pode ser um lugar difícil. Mas, se me perguntasses, dizia-te fácil, fácil, num abraço.
terça-feira, agosto 26, 2008
...
À minha direita, lá fora, estão dois adolescentes. Ela tem o cabelo num apanhado desalinhado encantador, um vestido à medida dos seus dezasseis, dezassete anos e come uma banana. Ele está com a roupa de ontem – tenho uma memória muito visual – e come batatas fritas, como se faz quando passa pouco do meio dia e se tem dezasseis, dezassete anos. Ela está sentada no quadrado interior da fonte de onde nenhuma água sai neste Agosto e ele no quadrado exterior, à sua direita, de frente para ela. Comem despreocupados. E falam para acompanhar. Ainda mais despreocupados. Como se falar fosse tão natural e desimportante quanto comer, quando se tem dezasseis, dezassete anos e se ama assim...
Às vezes, como agora, queria muito ter dezasseis, dezassete anos.
quinta-feira, agosto 21, 2008
Das pequenas maravilhas do quotidiano
portugal-fechado-para-descanso-do-pessoal-até-Setembro se tenha entranhado em mim. Não.
Tenho andado a evitar este espaço. Por causa da escrita de agora que é diferente da daqui. É isso. Já disse, está dito, não digo mais.
Escrita aparte, este é um cantinho de emoções, de surpresas boas, das pequenas maravilhas do meu quotidiano. Apenas.
Noto à minha direita, apenas a meio da escada, uma passada que se esforça por competir com a minha. Olho. Uma cara conhecida. O miúdo que costuma esperar comigo o bater das nove e meia da manhã à porta da Biblioteca. O miúdo que se impacientou há dias. O miúdo que olhou para o lado e soprou para cima porque o telemóvel lhe mostrava as nove e meia e não havia maneira de a porta se abrir. O miúdo que me perguntou as horas para confirmar a certeza do telemóvel. O miúdo que tentei entreter com ridículas justificações adultas que é verão, que a pessoa que abre a porta ter-se-á deixado adormecer, que acontece, que não tarda nada terá os livros todos ao seus dispor, que... O miúdo que me diz que quer lá saber dos livros, vai é para a net e só uma horita que a Lourdes (!) não deixa mais do que isso, é tão chata, o que é muito injusto porque vocês os grandes podem estender-se pela manhã, pela tarde, o dia todo, não é. O miúdo que depois disso, que remédio, vai para o andar debaixo ver filmes. O miúdo que, reflectidamente ou não, queria cortar a meta do topo das escadas antes de mim. Não consegui deixar de lhe sorrir. E atrasar o passo. Retribuiu-me. Um sorriso lindo ilumina-me o dia.
terça-feira, agosto 19, 2008
quarta-feira, agosto 13, 2008
As dúvidas dos amigos
quinta-feira, agosto 07, 2008
Os meus poetas - 5
Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito,
[acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.
A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.
"Do ciclo da intempéries 1" , de Dos Líquidos, 1ª ed. Porto, Fundação Manuel de Leão 2000
terça-feira, agosto 05, 2008
(Do dia) De hoje
Há dias que parecem velhos. Dias vestidos de negro. Cansados, vazios, tristes e sós.
Há dias que parecem domingos. Dias lentos, preguiçosos, de sofá, pijama e apple crumble com gelado.
Há dias que parecem quartas. Intermináveis, esgotantes, longos, longos, longos.
Há dias que parecem regaços. Apegamo-nos a eles, muito, muito, muito; adormecemos neles e adiamos, dia após dia, o acordar.
Há dias que parecem remoinhos. Absorvem-nos até ao âmago e afastam-nos do nosso mundo.
Há dias que parecem verões. São os dias dos amigos, dos almoços, das conversas e dos risos, dos telefonemas à beira-mar, ao fim do dia.
Há dias que lembram um cais. Um adeus grande, até sempre.
Há dias que parecem uma parede. A que segura o edíficio e nos segura a nós ao entrarmos nesse novo mundo.
Há dias quietos. E bons. Todos nossos, para guardar.
Dias como hoje.
segunda-feira, agosto 04, 2008
No Banco, por causa de um sorriso verde-musgo...
Que Banco é Caixa, aprendemos todos há tempos. De Pandora, aprendi eu apenas ultimamente. Tenho andado às voltas na caixa de Pandora que é qualquer banco, estes dias muito mais vezes do que desejaria. Que tudo o que seja máquina e eu somos absoltutamente incompatíveis, não é novo; que me debitem duas vezes compras no cartão de crédito de-que-me-estão-a-debitar-sempre-tudo-duplamente na mesma semana em que, para evitar isso mesmo, faço ao balcão uma transferência bancária internacional, que, claro, não chega ao destino, é que me parece conspiração do Universo, bancário, contra mim.
Vou sempre ao mesmo banco, trato de tudo com o mesmo senhor, sempre. Ele já me conhece. “Olá Menina, é o costume, não é?” A mesma pergunta que me fazem todos os dias ao pequeno-almoço, o costume também, desde há sete anos, com a interrupção dos EUA pelo meio. Gosto quando alguém assim me diz Menina exactamente assim, detecto no tom uma maiusculação de carinho que me consola como se me desse colo... Trato de tudo sempre com ele, dizia. Excepto a semana passada. Que aborrecido o senhor não estar cá! Deve estar de férias, supus. No lugar dele, um rapaz que eu nunca vi por aqueles lados, muito branco, muito novo, muito atarefadamente profissional. A senha mostra-me uma fila de dez pessoas até chegar a minha vez e eu não tive remédio senão esperar. E olhar o rapaz, a única novidade naquele espaço, exíguo, que já conheço de cor.
Parece-me demasiado novo para aquelas cãs, tantas... Parece-me demasiado branco para aquele fato cinzento, para aquele cabelo, loiro escuro, e para aqueles olhos, verde-musgo. Aquelas cãs. Aquele cabelo loiro escuro. Aqueles olhos verde-musgo.
Aquelas cãs. Aquele cabelo loiro escuro. Aqueles olhos verde-musgo.
A maneira como compomos as palavras interiormente é terrível. Pode mesmo ser cruel. Há palavras que juntamos para algumas pessoas apenas e quando as aplicamos a outras há um alarme que soa dentro. E a advertência chega natural, os olhos baços do abarrotar de dias de uma vida de outrora, agora.
Aquelas cãs... Chega a minha vez, sei porque oiço ao longe o meu número, encaminho-me para aquele som automaticamente. “Está a sentir-se bem?” Não oiço. “Perguntei-lhe se se estava a sentir bem?” mais alto, ouço. “Sim, sim, peço desculpa, por momentos estava longe daqui...” “Logo vi.” Sorriu-me, largo, sincero, bonito. E não consegui retribuir-lhe o sorriso, não consegui encontrar dentro o sorriso que aquele sorriso merecia. “Queria cancelar este cartão...” – disse, sorriso pequenino no olhar, o melhor que arranjei, disse, muito viva, muito objectiva, muito apressada, também. Mexe no computador e sempre a olhar para baixo, “Hum... zangou-se com o cartão, foi?...” E aí, não resisti, se há coisa que me derrete é uma boa Metáfora, uma tirada espirituosa, metáfora, metonímia, trocadilho, chalassa, o que for... Ofereci-lhe o melhor sorriso que consegui junto com as desculpas pelo que lhe havia negado injustamente minutos antes. “... Sim... não... talvez... um pouco, sim...” Novo sorriso largo e eu a corar. “A bem da minha conta bancária e da minha sanidade mental e da vossa, este é mesmo melhor cancelar!” Todo o vermelho do mundo a sorrir nas minhas bochechas. “Já está, ... Joana.” Estremeci. Empalideci. O meu nome. Ok, hora de ir embora. Rápido. “Já? Então, muito obrigada. Adeus, até à próxima.” “Adeus.”
E nas próximas vezes que as houve também, ainda há pouco, tratei de tudo com o senhor do “costume”. O rapaz cumprimenta-me com a cabeça e aquele sorriso. E eu procuro, dentro, em vão, o sorriso que umas cãs assim, uns cabelos loiro-escuro assim e uns olhos verde-musgo assim levaram outrora para parte incerta.