sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Acabei de me ver há dez anos atrás

Acabei de me ver há dez anos atrás.

Acabei de ver uma rapariga igual a mim há dez anos. O mesmo andar, o mesmo cabelo – nem sabia possível –, a roupa, a mala do ombro e a outra – a mala-bigorna –, tudo. I-gual-zi-nha. Parou a olhar os livros da exposição aqui em frente, parou o suficiente para eu me dar conta das evidências, abrandou com o meu abrandar de passo antigo, com o meu interesse por tudo, total e intacto, bonito, de há dez anos, abrandou a olhar os livros.

Não sei agora para que ala da Biblioteca borboleteou, emaranhei-me no tudo que era há dez anos e esqueci-me dela e das horas, da fome e do resto.

Foi pior do que quando vejo um adolescente – e estou sempre vê-los. Quando vejo um adolescente, daqueles que têm asas, dobram cadernos A4 de capa preta para caberem nos bolsos traseiros dos jeans, e escarnecem da vida, fico sempre a pensar na manta da minha avó sobre a minha cadeira de baloiço à janela do escritório.

Um dia perdi o coração e comprei uma cadeira de baloiço para poder chorar melhor. Trazê-la para dentro custou-me horrores, arranjar-lhe um recanto só nosso, foi fácil, demasiado até. Coloquei-a amorosamente voltada para a rua, para o sol dos dias, para um choro iluminado. Não se pensa quando se chora, pensa-se antes, muito, pensa-se depois, um bocadinho, mas chorar, chorar mesmo, o chorar de dor torrencial, sofrido, afasta o pensar – parece-me. De qualquer dos modos, uma coisa sucedeu à outra um dia sem mais – diria eu naturalmente.

Há um tempo em que se é maior que a vida de felicidade. Quase total. Um tempo em que não nos preocupamos com as horas, a casa, as regras, a roupa, o cabelo, o conforto, as poupanças, as doenças, os pais, os objectivos, o futuro. É o tempo em que se é adolescente, não importa a idade que tenhamos. Há esse tempo. E depois há todo o resto.

A ontologia do sapato

Marine Blue Shoes by Vivienne Westwood, não-meus...!

Tenho uns sapatos azuis escuros que só uso em dias como hoje. Dias de uma doce Primavera.

São bonitos, e agora quase velhos, estes sapatos azuis escuros de hoje. Andei muito, o apego é por isso, andei muito, tempo, para os comprar; andei muito tempo porque, acabei por concluir, os sapatos dividem-se em duas categorias básicas: os que são pretos e os que não sendo, são de todas as outras cores. Dentro da categoria ‘de todas as outras cores’ há uma sub-categoria, a dos castanhos, que domino como poucas pessoas – creio, mas, o azul-marinho que é a minha cor predilecta, o azul destes sapatos que eu queria tanto, esse azul nos sapatos, como eu numa série de coisas, difícil.

Tenho uns sapatos azuis escuros, os de hoje, que são bonitos, já disse, mas confortáveis também. Muito. E têm salto, pequenino – claro!, e são bicudos. Mas confortáveis, sempre. Pena é que me queiram voar dos pés ao mais pequeno encontro com os paralelos.

Nunca percebi a razão de ser dos paralelos. De qualquer coisa que se diga, chame, paralela. Qualquer coisa que nunca se . , que está condenada a arrepiar caminho sem nunca, mas mesmo nunca, pelo mais e pelo menos infinito do tempo e do espaço, nunca encontrar o seu igual, parece-me sumamente inútil. E triste. Ou melhor, totalmente desprovida de significado existencial.

Por isso é que desculpo aos meus sapatos azuis, aos saltos-agulha pequeninos dos meus sapatos azuis, a atracção fatal pelo abismo da relação imperfeita com a reentrância do paralelo.

Tenho uns sapatos azuis escuros que só uso em dias como hoje. Dias de uma doce Primavera no mundo.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Palavras, pedras e tangerinas

Segunda, 23 Fev e Quarta, 25 de Fev | 21h45 | ORG: Sindicato de Poesia | ciclo "Doze Meses Menos Um – Rascunhos#2"
marcações por 253 618 234 ou por info@velha-a-branca.net sujeitas à lotação da sala


“a distância que agora nos separa” será o segundo rascunho de “Doze Meses Menos Um”, conjunto de recitais que o Sindicato de Poesia apresentará durante 2009. Ana Arqueiro, António Durães, Gaspar Queiroz (que tentou juntar não-proposições) e Sandra Andrade usarão pedras e tangerinas e palavras dos livros de Daniel Faria Homens que são como lugares mal situados, Dos líquidos e Explicação das árvores e de outros animais nos dias 23 (Segunda-feira) e 25 (Quarta-feira) de Fevereiro, às 21h45, no café “A Brasileira”, para medir distâncias.

"Daniel Faria deixou o que transcende a memória de um nome, a permanência de um lampejo que o futuro, corrector de impulsos e de distracções, bem poderá erigir ao plano de uma evidência maior. (...) Os poemas de Daniel Faria assombram-se e acendem-se num advento da morte, tão ansiado quanto temido, que dela faz pedra da ara do sacrifício e aprendizagem do voo da redenção. Desta antecipação do fim, percebido como golpe, e não como condição, tratam os versos que o equiparam ao que 'dói como os cristais que são impuros' por serem humaníssimos na sua efemeridade." Mário Cláudio, Legenda para uma casa habitada.

*Tudo retirado daqui via mail da Ana Arqueiro. Dada a impossibilidade de colocar imagens hoje (?!), optei por as linkar.

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Falta-me agora Lisboa



A Aline vem a Lisboa no fim de Março ter com amigos, Joana se puder, vem ter com a gente. O B. vem a Lisboa com a mulher depois da Páscoa, numa escapadela-relâmpago de três dias, Joana se estiveres por lá, ou perto, vem ter connosco.

Não vou poder, nem estar perto. Vou a Lisboa na primeira semana de Março, num dia ainda por determinar. Tenho um irmão único. Um irmão que. E eu vou. Por ele. E a pensar numa saca de livros que tenho para distribuir, por umas quantas chaminés – caso tivesse barbas e vestisse o vermelho que nunca visto –. Vou. A pensar no café a que a uma menina-gaivota com nome de flor me quer levar a mim e a mais duas meninas que, penso, trarei comigo, como trago sempre, e cada vez mais, como dois bocados de mim. (Somos quatro. Quatro bocados de um todo, quatro se forem quartos – de lua, suponhamos, quatro quartos equivalem a uma unidade. Certo? Uma unidade linda, a nossa.)

Às vezes tenho saudades dos lugares, como de pessoas que conheci e que desapareceram. Faltam-me.

O António íntimo diz que a pátria de uma mulher é o lugar onde amou. Se calhar é. Se assim for, estou perdida. De tantas serem as pátrias que. Eu que amo as borboletas do Texas e o sol de Inverno do Porto, os passarinhos e o bolo de chocolate do centro de Braga, o calorzinho bom do que tenho na Madeira, o azul dos céus de Lisboa e a luz do Tejo e (tudo o que não é apenas o sofá desta minha amiga, e tudo o que não é apenas o riso desta e tudo, como é que eu explico o que não sei explicar, tu-di-nho-o-que-não-sei-explicar desta), e os cafés de Paris e os museus e os parques de Amsterdão e o meu ninho de Leuven e.

E.

Às vezes tenho saudades dos lugares, como de pessoas que conheci e que desapareceram. Faltam-me.

Como Lisboa agora. Muito, muito, muito.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

a stamp that has no glue



Um dia eu havia de escrever este post, eu sabia.

Um dia havíamos de nos encontrar. Um dia havíamos de contrariar décadas e décadas de psicologia que dizem que todo o encontro traz uma desilusão do imaginado. Um dia havíamos de nos encontrar. Um dia havíamos de acertar as nossas coordenadas, as nossas rotinas e os nossos deveres. Um dia havíamos de nos encontrar. Um dia havíamos de deixar ficar os dedos esquecidos longe, nos teclados de computador e telemóvel, e falar, realmente falar, do que é importante e do que não é, dessas coisas e das outras. Um dia havíamos de ir à minha livraria predilecta e pensar no bom que seria ter um sítio assim, um dia. Um dia havíamos de tomar chá e comer bolinho, lá fora, mas escondidos do sol, e eu havia de lhe ver o sono nos olhos e adivinhar o sacrifício, (princípios...!). Um dia, atentos aos gatos e ao cacarejar tão próximo dos galos, eu havia de lhe perceber o amor à terra herdado pelo sangue. Um dia, por entre o cansaço, eu havia de lhe descobrir aquela luz, nos olhos e no sorriso, ao telemóvel e ao falarmos deles. Um dia havíamos de rir e não rir, falar e não falar, e ainda assim saber. Saber que mesmo não falando, nem rindo, olhando só, nos entenderíamos. Um dia havíamos de nos encontrar.

Um dia eu havia de escrever sobre a pessoa a quem devia um abraço do nosso tamanho, a que um dia me salvou do pior, de mim própria. Um dia eu havia de escrever sobre a única pessoa que tem como insofismável que todas as Joanas são bonitas, que me conquistou assim, mesmo antes, muito antes, de eu o ver, de eu o ouvir, velarizar as laterais.

De sempre: Toda e qualquer pessoa que velariza as laterais é... linda*!!!


* com l- lateral ou velar, tanto faz.

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

A boca perfeita

Já a tinha visto uma ou duas vezes. Muito magrinha, sumida por debaixo dos óculos de sol, muito apressada, muito coquete no jeito de levar a mala a pender do meio do braço. Muito apressada, sempre formal, casaco e calça, sempre formal até quando a calça é de ganga, muito magrinha, muito apressada, já a tinha visto algumas vezes quando a minha rapidez na subida vertiginosa de manhã até ao café me permite olhar para o lado.

Hoje, antes disso, sentou-se à minha frente, e, sem óculos de sol, levei um bocadinho a reconhecê-la. Além de estupidamente magra, tem uma boca perfeita. Per. Fei. Ta. Eu e minha mania de observar as pessoas. Tem uma daquelas bocas que, achamos, só existem nos filmes antigos, boca de diva do preto e branco, ou boca de agora de photoshops e technicolors e sei lá mais que efeitos especiais que devem poder tornar uma boca viva, humana, mortal, num botão de rosa medieval ou renascentista ou, sei lá.

É verdade que, primeira coisa ao sentar, passou hidratante nos lábios, labello – até admira de tanta coqueterie, logo labello?! –, labello de amora ou frutos silvestres, que eu sei, chegou até mim o aroma, e se calhar foi isso que inicialmente me prendeu à menina-boca perfeita. Se calhar não, se calhar foi o já ter visto a menina, só, sem boca, se calhar nada, se calhar.

A menina é estagiária de. A menina explicava a uma colega, ou amiga, não cheguei a perceber, as partes que compõem o seu dia. A colega, ou amiga, não cheguei a perceber, perguntou então, muito no seguimento da conversa, se ela tinha um gabinete só para ela. Foi aí. Adeus, boca perfeita. Foi aí. O princípio do fim da perfeição. Via botão de rosa medieval.

A boca perfeita disse que não, que, infelizmente, tinha que partilhar o seu(?) gabinete, não espaço, que eu ouvi perfeitamente, com mais quatro, raparigas, ainda por cima(!), duas que, vá lá, nunca aparecem, olha, apareceram ontem, mas, como é hábito, só queriam rir, agarrei logo nas minhas coisas discretamente e fui, boca perfeita, para o gabinete de cima, o que vale é que elas vêm pouco, só de quinze em quinze dias, e à segunda e à sexta não trabalham, e quando vêm, nos dias do meio da semana que se contam de quinze em quinze, estão só das dez às cinco, às vezes menos, e só têm menos um ano que eu, boca perfeita, e há lá uma que o pai também é, e, que, imagina, quer fazer disto carreira, e isto apesar de já ter trinta, sim aos trinta ainda está a estagiar, e uma pessoa pergunta-lhe uma coisa, como eu, boca perfeita, há dias, e ela responde sempre, posso dizer-te amanhã, para ter tempo de perguntar ao paizinho, claro, nunca te diz nada na hora, e imagina querer fazer disto carreira, e o pai, pelo que se diz e eu, boca perfeita, já li umas coisas que ele fez(?), também não é grande coisa, sabes que... há pessoas que vivem de aparências.

Há. E bocas perfeitas, que continuariam a sê-lo, nas aparências pelo menos, caso se mantivessem fechadas.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O quadrado

Ele tinha que ir tirar fotografias. Não me disse nada até acabarmos o gelado, sabes onde posso tirar uma meia dúzia daquelas do tipo passe, eu, sei lá, está bem mas vens comigo, vou, fui, era Verão, e eu queria muito deixar-me ficar na esplanada, o sol fazia-me cócegas no fundo da perna e eu, olhos fechados, quase adormecia naquele langor, mas, vou, não tenho nada para fazer, vou, fui.

Mesmo em frente, bastou-nos atravessar a rua, um fotógrafo. Não nos demorámos muito na montra, nos preços e nas modalidades. Entrámos, ele disse o que pretendia e o senhor mandou-o subir. Sorri-lhe que ficava cá em baixo à espera. O senhor surpreendeu-se e achando que me tinha excluído sem querer, muito sem querer, disse: a namorada também pode subir, venha também, menina.

Extrordinariamente, nunca fomos a lado nenhum sem que se supusesse que éramos namorados. Mais ou menos verbalizadamente, mais ou menos directamente. Eu sempre a corar, a tentar explicar mais ou menos esforçadamente que não, ele a rir-se, a pedir-me para não me esforçar, a repetir para eu não pensar, que se eu pensasse menos talvez, talvez não tivesse que. Ele era muito pragmático. E risonho.

Gostava de ser espelho de mim. Gostava de poder sair fora de mim para me olhar. De fora. Gostava muito de me ver, de ver como sou quando estou com as pessoas. Gostava de perceber por que razão toda a gente achava naquela altura que. Gostava muito.

Especialmente porque agora, de manhã, estas manhãs, se chegamos os dois, quando chegamos os dois, ela olha para o lado, ela suspira, ela enjoa, ela recusa-me o sorriso e até os bons-dias. Quando me olha, das vezes que me olha, é calada, rosto fechado, uma acusação aberta nos olhos, uma acusação que prefiro nem tentar descortinar. Das outras vezes, em dias bons, sorri-me, replica os meus bons-dias, mas só em dias bons, só em dias que lhe são bons porque nós, só quando chegamos separadamente.

As pessoas são engraçadas. Perdem demasiado tempo. A tirar medidas, a verificar estilos, a perguntar-se porquês inúteis, quando já não têm os meus vinte anos daquele Verão. As pessoas perdem tempo, demasiado, a desgostar e a desgostar-se. As pessoas perdem, o que resta não chega, pouquíssimo tempo a abrir o coração ao outro, a tentar a felicidade.

Acredite ela ou não, os nossos pequenos-almoços não têm nada de extraordinário, se bem que o café cheio e garrafa de água para a minha manhã, e o café curto e copo de água para o gole, único, dele, isso bem que, mas fora isso, de extraordinário, nada. Eu tomo o pequeno-almoço no mesmo sítio sempre. Ele apercebeu-se e vem. Vem muito, é verdade. Vem quase sempre. E eu, verdade também, não o sacudo para fora da mesa; divirto-me com as tiradas ‘geniais’ dele, do-estado-crítico-e-caótico-e-sem-remédio-do-mundo, e ele, com os meus devaneios oníricos, as minhas teorizações idealistas, suponho. (Cá entre nós, eu e a minha esperança!) Claro que saímos do café sempre bem-dispostos, eu mostro mais, eu e a minha transparência!, certamente mais que ele, sei, ele tem demasiado sono sempre, e rir custa-lhe um bocadinho, além de não estar habituado – o mundo é tão mau, não há nada para rir na conjuntura actual, já viste como agora tão facilmente se, e tem sono, sempre – já disse?, pelo que os músculos da cara têm que estar acordados para se movimentarem, certo?, e sendo de manhã... é de manhã, não se devia trabalhar de manhã, sabes, como é que tu, isso é que eu não entendo.

Um dia espero que ela perceba que, nesse dia talvez possamos enfim tomar o pequeno-almoço sossegados, eu pelo menos, sabendo que ao chegarmos os dois, ela, ninguém se sentirá quadrado.

sábado, fevereiro 14, 2009

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

É quando penso em amanhã


A minha mala pesa agora, estes dias, sete quilos. Os cinco do costume mais os dois das cartas do António íntimo que leio agora, estes dias até ao sol, que vou lendo devagarinho, o mais devagarinho possível, até ao sol, que vou interrompendo todas as manhãs de súbito, quase de súbito, depois da oito, quando o sol me entra cartas adentro pela janela, pelas mãos, pelo colo, coração adentro.

Olho janela fora, olho o sol, perco-me, volto a mim, à mala, tiro de lá os óculos-de-sol, ponho-os – sumo momento de felicidade! – olho-o, todo luz este sol bonito de agora!, e penso no Eugénio de Andrade a aquecer as mãos em manhãs de fim-de-semana na Foz. Fecho os olhos e imagino-o com muita força. Entendo-o. E penso em quem me contou isso numa manhã de sábado americana, há muito, muito tempo. É sempre, é inevitável quando olho um sol de Inverno.

É quando olho um sol de Inverno. É quando passo a ferro. É quando começo a ouvir o primeiro acorde de uma ou outra música no ipod. É quando me cheira a alfazema. É quando passo por uma rapariga bonita, mais bonita que eu, e magrinha, mais magrinha que eu, e com sotaque daqui, o sotaque que eu nunca. É quando passo os olhos, e as mãos, por um Jack London ou um Dino Buzzati ou. É quando compro um vestido. É quando me elogiam o cheirinho a baunilha num beijo às mãos. É quando vou almoçar a um sítio novo. É quando noto que o cabelo está a crescer numas ondas finalmente bonitas. É quando visto umas meias de renda. É quando me chegam mails, notícias e convites, desse país, dessa cidade nesse país. É quando janto mini-pizzas. É quando vou ao banco e as cãs e os olhos verdes do rapaz crescem. É quando leio, uma palavra, uma expressão, uma frase sempre. É quando escrevo, todas as palavras, todas as expressões, toda a frase sempre. É quando me levanto, a primeira coisa. É quando trabalho, ao longo do dia, muita coisa. É quando me deito, a última coisa. É quando é sempre. É quando. É sempre.

Sempre. Sempre. Sempre.
Sempre.


Acredito demais. Acredito demasiado para conceber sequer lutas perdidas de antemão. Não acredito em lutas perdidas de antemão. Não acredito em lutas entre duas pessoas que se. Perdidas. Não, não acredito. Lutas. Também não. De antemão. Não, muito menos, não acredito. A culpa é do António íntimo. Ou minha, que acredito. Sei lá. A culpa é minha, acredito.

Sou uma miúda muito estranha, que queres?



quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Qual é a minha casa?


“Botox”

De 13 a 22 Fevereiro

A companhia Primeiro Andar lançou um convite aos dramaturgos Miguel Castro Caldas e Pedro Eiras e à encenadora Cristina Carvalhal, para a criação de um novo espectáculo, sobre a temática do tempo.

O resultado é “Botox”, um espectáculo criado a partir de textos dos actores e de “A morte tem de vir” de Miguel Castro Caldas e “Corda” de Pedro Eiras.


“A morte tem de vir” de Miguel Castro Caldas

Três actores em palco tentam existir. Perante o vazio recorrem a esquemas e situações várias, ou até a personagens, em busca de algo. Estranham a sua condição, as suas palavras, experimentam palavras de outros. Tentam reinventar o que já foi inventado. Apropriam-se do tempo que têm perante a eminência da chegada dessa outra personagem que tem de vir.


“Corda” de Pedro Eiras

Uma casa. Três personagens. Três tempos diferentes. Três perspectivas distintas em confronto num mesmo espaço acabam por revelar diferentes espaços identitários. Qual é a minha casa?

Horário: De terça-feira a domingo – 21h30

Bilhetes: 5€


Rua da Alegria 503
(entrada pela Rua da Escola Normal 39) - Porto
Reservas: Telefone 225 189 982 | 225 189 983
www.esmae-ipp.pt/thsc

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

De uma ternura imensa



Não sou deste tempo.

Não sou. Não sei de que tempo sou, mas não sou deste. Também não sou dantes deste. Viajo demasiado, conheço demasiado, olho e vejo, e gosto de olhar e ver, demasiado. Não sou de depois deste tempo sequer. Doem-me as pessoas deste tempo que o amanhã revelará, doem-me essas pessoas, as pessoas com medo, as pessoas que desculpam o medo que lhes sobra com o tempo que lhes falta para estar. Estar só. Estar com. Estar só com. Seja de que maneira for, que o estar com tem maneiras... tantas quantas a vontade de estar, e o engenho, e a arte, e o coração, ditarem – se porventura quisermos escutar.

Gosto de coleccionar sorrisos. (E camafeus. E caixas de fotografias. E varia de joaninhas.) Há quem coleccione amigos, eu que sou difícil, exigente com os outros e muito mais, mas muito mais mesmo, comigo, eu que não suporto certos outros, às vezes, muitas vezes, e sempre – ou nunca – alguns, e até a mim não me suporto muitas vezes, colecciono sorrisos. Receber um sorriso, alguns sorrisos – os difíceis –, é como me porem uma flor no cabelo. Algo de absolutamente maravilhoso, de fora deste mundo, deste tempo. Enfim. Tenho uma atracção irremediável por sorrisos difíceis. Deve ter qualquer coisa a ver com o complexo da maternidade universal que acho que tenho, vejo-me sempre a querer reabilitar pessoas devolutas com um esmero e uma dedicação e um carinho e. Tudo o mais, que vem não sei de onde – já perdi há muito o sítio onde isso se arruma normalmente – mas é tudo muito autêntico, as emoções estão mais na cabeça que em qualquer outro sítio, órgão, do corpo humano, creio. De resto, não há sorriso que brilhe mais, dentro e fora de mim, do que o de uma pessoa que não sorri facilmente – pronto.

E foi mais ou menos assim, por vias desta minha apetência para o ‘construtivo’, e sob o disfarce-necessidade-absoluta-de-comprar-prenda-de-aniversário-para-amigo-tristinho, que tropecei neste António, prenda minha para mim de há tanto tempo pretendida. (E pensando bem, se me ficar só pela apetência, foi assim que tropecei num outro António, prenda também – mas isso, para uma próxima.) Este António é o António Lobo Antunes íntimo. E jovem. E magro. E loiríssimo. E ainda mais apaixonado, apaixonadissíssimo, pela mulher. (Não vou escrever primeira, porque do que ando a ler só posso concluir que única. Única mulher. E a unicidade não tem ordinal, nem em Português, nem noutra língua qualquer. A mulher, portanto.)

Difícil. Parece-me difícil. E o que eu gosto disso!... Difícil. De ler, de perceber no imediato, de tudo. Difícil de tudo. Dá luta. E eu gosto. Difícil agora. Há tempos esteve em Braga. Difícil de sorrir, difícil de fazer sorrir, difícil de ouvir sem. Agora. Este António de agora. Difícil.

Do livro proliferam, na web pelo menos, críticas acerca do patamar a que o voyeurismo, o voyeurismo somente, elevou esta obra-menor, menor totalmente; acerca da puerilidade da ternura que este António, que não é o de hoje, o de agora, o difícil, o grande, o maior da actualidade, deixa passar; acerca da. Puerilidade da ternura. “Puerilidade da ternura” parece-me péssimo como expressão fixa. Além do mais, qualificar um substantivo abstracto com uma qualidade, parece-me no mínimo... crítico! de tão... criticável! Felizmente, noutra dessas críticas “... de uma ternura imensa...” entrou-me pelos olhos dentro e não saiu mais. “Imenso” sim, parece-me ser um qualificativo adequado para um nome abstracto, para um nome como ternura, para esta ternura:

Meu amor querido

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Hölderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher


António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto - cartas de guerra

Acho que há uma altura em que se é assim. Imenso. Depois passa: a vida traga-nos isso. E se passa para o lado de lá da vida. E não se é de tempo nenhum. E se escreve. E o agora fica um bocadinho mais duro. Difícil.

Mas.

Há sempre um mas. Nem que seja para prender aquela parte do cabelo que sempre esvoaça.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

De hoje, Terça ...

Já disse que pode ser Sábado à Segunda?

? E que as pessoas que têm o mesmo nome estão condenadas a dar-se bem por haver uma maneira igual de sentir, de estar, de ver a vida, de gostar de certas coisas que ‘por acaso’ são as mesmas, de perceber o que se diz e o que fica por dizer, sobretudo o que fica por dizer, o que se omite, o que se deixa em branco, sem título, vá, tudo o que o nome não dita, mas que contém indelevelmente... ?

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

De Sábado (III)

Devia ser Sábado no mundo mais vezes.

De Sábado (II)


"Que sempre floresce." (Para não me esquecer). Que sempre floresce. Que sempre floresce.

Ela veio de propósito. A culpa é minha que não tenho ficado nunca esta semana até à hora do nosso cházinho – um quarto de hora antes do fecho da Biblioteca. Ela veio de propósito. A Ana veio de propósito. A culpa é minha que lhe disse que Segunda-feira não vinha, só na Terça só, só a partir de Terça.

Ela veio de propósito, a Ana Arqueiro, mas disfarçou-o com a doçura e o riso de sempre (é fácil quando se têm um riso assim e se emana tamanha doçura tão encantadora, tão naturalmente.) Ela arrastou-me, nunca me arrasta, tem aquele jeitinho dela, tão bom, de irmos as duas para o chá que não foi – foi carioca de limão - no meio da tarde de Sábado na Biblioteca.

Ela veio de propósito, a minha querida Ana, mas disfarçou-o com o riso, o que me encanta aquele riso!, e com os ensaios, e com a poesia, e com o teatro, bem, com as coisas do costume.

Ela veio com o propósito de me dar um vaso de Jacintos. Hyacinthus., pode ler-se.Três bolbos. “Não encontrei quatro, foi pena, eu sei ...” Não foi. Três é um número perfeito. Por todas as razões que a simbologia, cá entre nós, nem chega a a-flor-ar. São rosa, os Jacintos, começaram a flor-ir há pouco. “Estão a abrir, vês, também já os tenho há uma semana, tu é que nunca mais ...” Aparecia. Eu é que nunca mais aparecia àquela hora tão nossa, eu sei. Já disse que são rosa? Jacintos-rosa. Daquele rosa bonito, muito clarinho, muito suave, muito, muito, muito, meu, nosso. Já disse que são três? E que dois estão muito juntinhos porque um outro teima em descair, assobiar para o lado, para lhes dar o espaço deles, o espaço de uma espécie de nós. Já disse que vinham dentro de um laço, verde de fita, tinto de prata? Já disse? Que na fita verde, a tinta prateada, pode ler-se: “Para a minha amiga Jo que sempre flor-esce.” “Jo”, eu. Desde os E.U.A. que ninguém amigo me chama Jo. Mas se fosse só isso...

“... que sempre flor-esce”. Sem-pre. Flo-res-ce. Flor-esce. Flor-es-ce. (Sou. Se.)

Flor-esce. Um aperto no coração - ou muitos, um sorriso - ou muitos, uma lágrima, - ou muitas, certamente mais que três, e tudo o mais que pode, mas não devia, ou devia, nem sei, flor-escer em Sábados intensos destes. Só se f(l)or.

De Sábado (I)

O Pedro vai ter um bebé.
O Pedro, meu colega de Doutoramento, vai ter um bebé.
Já me tinha ligado no dia anterior, mais ou menos à hora do lanche, mas eu tenho sempre o telemóvel em vibração e ando estes dias verdadeiramente desnaturada, eu que ando a não estar para pausas ou lanches, a não estar para os amigos que ligam, nem para os do Messenger, nem sequer para os do G-Talk, eu que ando a não ficar as tardes na Biblioteca para aquele cházinho do fim do dia; eu que ando a trabalhar com phones, ao som do ‘Spiegel im Spiegel’ do Arvo Pärt em repeat, e ainda assim pior e menos do que queria, eu que nesse dia, Sábado, anteontem, ao sair do banho, cedo, à hora do costume, quase tropeço sobressaltada por um arranhar vampírico vindo da cozinha; eu que descansei ao ver por fim a luzinha azul do telemóvel a piscar sobre a mesa, a bem dizer a piscar para a cozinha toda.

Nova Mensagem. Pedro. 6h 15m. Ainda 6h 15m? Este Sábado prometia. Oh se! Ora bem: Pedro às 6h 15m, mais uma insónia do Pedro, mais um-a-ti-que-vais-trabalhar-a-estas-horas-indecentes-os-bons-dias-de-quem-vai-ver-se-consegue-dormir-alguma-coisa-agora-que-o-cansaço-finalmente-vem, de certeza. Mas não. ‘Olá, ontem não te consegui apanhar, mas como a estas horas já estás...” Acordada. Estava mesmo, depois daquele arrastar sobre a mesa da cozinha!... “... nada de especial, daqui a sete meses vou ser Papá!”

Pa-pá, o Pedro. O Pedro, meu colega, que se casou no dia de anos da minha mãe, que fez com que eu fosse para a Madeira no dia a seguir aos anos dela que “... filha, eu faço anos todos os anos e o Pedro, Deus queira e ele também, só se deve casar desta vez...”. O Pedro. Papá. Com maiúscula e tudo na sms. Assim: Papá. O Pedro e a Ana vão ter um bebé!

O Pedro e a Ana vão ter um bebé. O Pedro e a Ana vão ter um bebé. O Pedro e a Ana vão ter um bebé!

Ainda há dias falava sobre isso com o e até evito esse assunto – esta é a parte em que o se ri e cospe o écran todo do computador para não se engasgar, se porventura estiver a comer ou a beber alguma coisa – evito MESMO, constrange-me, não gosto. (É algo que quero muito e sou mais excessiva do que desejaria nos quereres.) Além do que as coisas que queremos muito, se forem boas, costumam fazer-se esperar.

Preservando-as, volto ao bebé do Pedro. Depois de molhar o teclado e a parte do lençol de banho que devia dobrar para dentro bem no meu lado esquerdo, depois de uma mensagem em branco e de outra para o número antigo, depois do impacto incial da notícia, lá lhe dei os Parabéns!, e pensando bem... escrevi muita coisa, mas não exactamente Parabéns!, helás, não há impacto que não cause danos; mas ele percebeu, o bom do Pedro é que percebe sempre, sei, especialmente quando leio “És um amor!” – é a espécie de ponto final nas mensagens dele – e é também quando eu fico a pensar no quanto esta expressão pertence a outrém desde o precisamente, no quanto esta expressão devia ser protegida por leis de copyright.

Este é o primeiro ano de Doutoramento do Pedro, o ano em que conseguiu a Bolsa, o ano em que vai para a Bélgica um semestre, o ano em que vai ter um bebé, o primeiro dos cinco (era, não era?) que me lembro de ver saltar para o centro do slide final do Power-Point que apresentaram no fim do jantar do casamento.

Há pessoas que têm vidas perfeitas.

sábado, fevereiro 07, 2009

'Se tu me linkares, eu linko-te. É o que posso fazer.' Done.

Agora vou não sei bem para onde pensar nisto um bocadinho e volto numa outra vida.

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Everything changes but beauty remains.

Às vezes parece que tenho muitos anos.

Às vezes parece que tenho muitos anos, já vivi muitas vidas, conheci e pertenci a muitos lugares, agora distantes, muitas pessoas, sempre presentes, às vezes.

Às vezes, a qualquer dia, a qualquer hora, uma imensidão de memórias desenrola-se na minha cabeça a uma velocidade que eu não controlo e que o encosto que procuro sempre, dessas vezes, tenta, em vão, amparar.

O melhor ano da minha vida foi o segundo da Faculdade. Por que razões não sei, por mais voltas que dê, por muito que reviva tudo o que aconteceu, que foi nada, ainda não percebi. Acho que teve qualquer coisa a ver com ter finalmente conseguido fazer de Braga a minha casa, a minha primeira casa, toda minha, só minha, para guardar, para sempre. Foi o ano em que andei feliz, genuinamente feliz, todos os dias.

O segundo melhor ano da minha vida foi o décimo-primeiro, não de vida, mas do liceu. Sei perfeitamente porquê. Chamava-se Celso, andava em Economia no ano à frente, e tinha um carocha verde-garrafa que tremelicava e soluçava, muito, demasiado, todo ruído, todo espirros-soluços-tremeliques ruidosos, e o atirava para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, lá dentro. Só faltava deitar fumo. Ou ir perdendo peças e desconjuntar-se a carcaça antes de chegar ao estacionamento.

Quando eu entrava no bar, das poucas vezes que ia ao bar da escola, e o Celso lá estava, como sempre, a jogar bilhar – sempre, mas especialmente na altura dos testes, especialmente quando tinham tido teste de Matemática: ele tinha sempre 20 a Matemática e incrivelmente resolvia os exercícios num terço do tempo regulamentar – no resto do tempo, o teste circulava pela turma toda, para garantir o maior número de positivas possível. No resto do tempo, até ao momento em que o apelo do bilhar se sobrepunha à generosidade e estava quase a dar o toque e eu estava quase a sair. – Quando eu ia ao bar, das poucas vezes que entrava no bar da escola, o Celso parava de jogar bilhar. Parava tudo. O Celso parava de jogar, e fazia parar o tempo. Encostava-se à parede, e fazia parar o tempo. Olhava-me e fazia parar o tempo. E as pessoas. E tudo. Menos nós. Menos o bater descompassado e grande, demasiado grande para aquele espaço, para nós, maior que nós, maior que tudo, o bater dos nossos corações.

Acho que tudo é um pouco assim quando se tem quinze, dezasseis, dezassete anos: demasiado grande, maior que o espaço e que o tempo, que nós – pelo menos.

Chama-se João. Descobri há dias – ouvi ao longe Johnny isto, Johnny aquilo, confirmei hoje – gritaram-lhe lá do fundo qualquer coisa, João, e ele virou-se, não disse nada, não se riu, mas acusou o toque. João é um nome lindo e eu acho, acredito, que as pessoas que têm o mesmo nome, – mesmo que varie: em género, num ou noutro som, num ou noutro ditongo, numa ou noutra letra – as pessoas que têm o mesmo nome estão condenadas a dar-se bem. Há uma maneira de sentir, de estar, de ver a vida, de gostar de certas coisas que ‘por acaso’ são as mesmas, que o nome não dita, mas que contém indelevelmente, e que há-de unir sempre quaisquer duas pessoas com o mesmo nome. Sempre.

Possivelmente porque somos três, a minha irmã mais nova distribui os stalckers – qual é a palavra em Português? – em três categorias: os não-nativos (i.e. indianos, chineses, ucranianos...) – que a importunam, os velhos – que afligem a Té, e os adolescentes – que me caem ao colo, quase.

Sacou o passe de uma daquelas carteiras que fazem muito barulho ao abrir porque têm fecho de velcro – ainda existem!?, isso acordou-me logo, há quanto tempo, desde o Celso pelo menos, mas suponho que vão de existir sempre enquanto houver quem tenha dezasseis, dezassete anos... Então, chama-se João e é muito caladinho, ensonado e maldisposto – possivelmente por isso é que nunca fala, nem grita, como os outros, nem se ri, nem nada. Semblante fechado, olhos muito abertos desde aquele pedido de desculpas trapalhão. Os outros são umas quantas meninas, hoje pelo menos, costuma ser uma só, e um outro rapaz – que fala demasiado (e muito forte de timbre), tem genica demasiada (especialmente para cheirar o cabelo das meninas e roubar um phone às meninas e tudo o mais) e boa disposição demasiada para as oito da manhã. Entraram todos e sentaram-se como é costume, por ali. Até havia três lugares vagos! Dois foram prontamente ocupados pelo rapaz dos demasiados e pela rapariga do costume, mas não o outro, igualmente desocupado não fosse o bem-dobrado sobretudo e a pasta do senhor que já lá estava desde o Porto, porque o João não quis importunar o senhor com um ‘Posso?’ pequenino, mas certamente demasiado para quem não diz nunca nada.

Lá teve de se sentar ao meu lado. Custou. Anda há que tempos, desde as desculpas – note to self: nunca mais pedir desculpa com a mão no ombro de ninguém!, a sentar-se bem lá à frente, bem de frente para mim, a reproduzir, com muita força, o olhar de um Celso de há mais de dez anos até os nossos olhares se encontrarem. Anda há que tempos a esticar-se muito acrobaticamente, em espreguiçadelas que não lembram a ninguém, para onde quer que me vire. Anda a migrar de mim para as meninas do grupo que se apressam comigo para a saída num pêndulo constante de olhos com fita métrica incorporada.

Por isso hoje talvez tenha custado, custou, mas não teve outro remédio, lá tirou a mochila e se sentou. E virou-se para o lado dos amigos e voltou-se para a frente e virou-se para o meu lado, e olhou-me a bochecha primeiro – devia estar a contar os sinais – e depois o sol lá fora, como eu, e voltou-se novamente e roeu as unhas, e espreitou o meu i-pod dentro da mala e olhou lá para fora outra vez e voltou a virar-se para os amigos e, aos bocadinhos, foi repousando no meu sossego – uma das minhas mais acarinhadas especialidades: sossegar gente do tipo adolescente – foi ficando mais e mais descansado, costas todas no banco, olhar sereno. E então fechei os olhos, a música era muito boa, e encostei a cabeça ao meu banco até chegarmos a Braga.

(E ele se levantar logo para eu passar e ele poder sacar dos olhos a fita métrica do costume.)

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Da proximidade

A proximidade é uma coisa estranha.

No comboio senta-se muita gente ao meu lado, à minha frente, em frente mas ao lado, em frente-em frente. Varia muito, tanto quantas as pessoas que, por alguma razão, mais ou menos prática e habitual, mais ou menos extemporânea, se decidem sentar ali. Dantes não era assim. Era certo. Pelo menos o informático: todos os dias entrava às sete e trinta e cinco naquela paragem e vinha sentar-se ali, arrumava as coisas em cima e sentava-se. Em frente e ao lado. Todos os dias. Era certo. Certinho. Mesmo com o colega. Mesmo quando o colega também vinha. Depois, depois a minha mãe ficou doente e eu estive meses fora daqui, longe de comboios; depois regressei, depois ele também, mas só e de vez em quando; depois eu permaneci e ele deixou de vir, cá para a frente pelo menos; depois, agora, vem, só, sem o colega, mas com uma menina e sentam-se ambos lá atrás, lá muito atrás. Agora, por isso também, varia. Agora, ontem, uma senhora sentou-se à minha frente, em frente, - lugar perigoso!, eu já devia saber - e estava constipada, daquele constipado muito tússico, garganta muito seca e ouvidos muito a tinir, e, sem mãos, com elas coladas ao interior dos bolsos, deviam estar geladas, coitada, tossia-me perdigotos de constipação-tússica-e-oto-qualquer-coisa para cima. Nem as quinhentas páginas das cartas da Frida Khalo me serviram de escudo, eu bem queria...

As pessoas que começam o dia às sete e meia da manhã, terminam-no às seis e pouco, reencontrando-se todas – incrivelmente! – nesse comboio. Todas e mais algumas – as que começam o dia às oito e meia da manhã, desconfio. Desse grupo há dois rapazes que me desesperam um bocadinho. Pcs ao colo riem-se muito, muito alto, des-bra-ga-da-men-te, de tudo o que eu não sei e que o écran lhes devolve. Maldosamente, lembram-me muito o americano típico que faz do sofá e de programas de televisão mais ou menos rasos o seu planeta pessoal, aquele “jeitoso-preguiçoso” que está eternamente à espera de uma miúda que o salve e enquanto não, vai deixando roupa, louça por lavar e comida de há séculos espalhados por todo o lado junto com duas ou três frases absolutamente inoportunas – são um bocadinho parvinhos, é... – que, para viver, se vê obrigado a articular. Há dois mais ou menos assim. Mas um já se apercebeu dos meus olhares desesperados para ler em sossego ou, pelo menos, para encostar a cabeça ao banco e fechar os olhos e deixar-me ir até onde o ipod me levar, e até tenta comportar-se; o outro não. Até há dias. Há dias o outro, sozinho, sentou-se à minha frente, mesmo em frente, e, a determinada altura, achou que era hora de mudar de pé de apoio e cruzar a perna. Tudo bem. Se não me tivesse dado um valente pontapé no joelho! Doeu, mas o que doeu mais foi o auto-controlo que fui buscar não sei bem onde para amainar as desculpas vermelhas-como-um-tomate e tão desesperadas do rapaz e não desatar a rir. “Não tem mal, acontece, então, não se preocupe, eu vou sobreviver.” Não consegui aligeirar o desconforto do rapaz, e queria muito, ganhou-me, ganhei-lhe simpatia, a ele e até ao outro, eles que agora até se sentam nas imediações e riem baixinho.

Mas nem é desta proximidade que eu queria falar. Queria dizer de uma que se sente, só às vezes, e só com algumas pessoas. Daquela de quando uma pessoa vem e fica assim ao lado e nem diz nada e no entanto há um calorzinho bom, quase palpável, daqueles que lembram um colo em que apetece descansar ao fim do dia, mesmo quando não é o fim do dia, e ainda assim apetece, só um bocadinho, só a cabeça, daqueles que se sente tanto, quase vê, nos poucos centímetros que nos separam. A proximidade é uma coisa extraordinária.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Andar a correr ou Crash into me (but not you, not like that)




Eu a correr, como sempre, eu a correr ao subir a rua.

Eu a correr: passo apressado, a ver se chego antes de; pensamento apressado, do tanto que tenho para fazer antes de; jeito apressado, por estes dias não ter, não haver, tempo para fazer tudo como. Eu a correr. Rua acima. Eu ainda assim a querer atravessar lá para cima na passadeira, eu menina bonita; eu a desviar-me da multidão de pessoas igualmente bonitas que quase me atropelam na passadeira. Eu a correr.

Eu a correr contra o tempo, o vento a correr contra mim, o cabelo a desalinhar-se, o vento a desalinhar o cabelo – mais do que o normal – e ele!, ele, quando o cabelo quis voar, e voou, um bocadinho só, para aquele lado, dele; ele que vinha a descer pesado rua abaixo, ele! – queria arranjar uma interjeição, uma onomatopeia, uma interjeição onomatopaica para aquilo, mas não sei, não consigo – ele!, ele inspirou tão profunda e ruidosamente como se quisesse sorver todo o cheiro do mundo do meu cabelo de uma só vez.

Se porventura me fosse possível andar menos a correr e mais a pensar, acho que aquele ele! me tinha assustado.

domingo, fevereiro 01, 2009

Obrigada


Obrigada à Ana Arqueiro que trouxe o Jorge, e a sua doçura de sempre, e o riso, e... e fez a nossa amizade ficar ainda mais bonita.

Obrigada à Ana Catarina por ter permanecido ao meu lado o tempo todo, pelas nossas conversas do costume - ai as nossas conversas! - numa viagem de comboio do Porto a Braga que passou num ápice; mas sobretudo pela luz e pelo brilho que emprestou a esta viagem que não é de comboio, nem passa rápido, de onde até onde o coração me levar.

Obrigada ao António que trouxe o outro Jorge, do fenotipo estrangeiro, das membranas da Física Quântica, do palmreading e do coração internacional. Obrigada ao António que veio, como sempre - eu sei - por mim, só por mim - eu sei - e eu que de cada vez fico . you know...

Obrigada ao Pedro que levou a Rita (que levou o Pedro, na realidade), o meu único blogamigo ali, blogamigo desde os E.U.A., desde o início deste espaço. Obrigada ao Pedro, por aquele jeitinho especial de ser menino - mesmo com dois metros, especialmente com dois metros, - pela ternura e pelo carinho da presença. Obrigada ao Pedro e à Rita por me terem dado algo maior, daquele maior-maior, a que aspirar - something to wish for, someday, somehow...

Obrigada aos pais da Helena, a minha melhor amiga dos tempos de Faculdade, por me receberem sempre - e são tantas as vezes! - como se dela se tratasse: de braços abertos, em roupão mas sem sono às quase duas da manhã, pijama sobre a cama, chocolatinhos sobre o pijama.



Obrigada a todos os que estiveram ontem comigo porque os trago no coração, levando-os para todo o lado em pensamento, visualizando-os no meio das conversas que tivemos, imaginando os sorrisos e os abraços: obrigada à Teresa, ao Nuno e à Agostinha e aos papás, meus, todos cinco; obrigada ao Pedro Eiras, à Vanessa e à Raquel, à Vânia e ao Nuno, à Ana Braga Lopes, à Maria de Lourdes Beja, à Marisa e ao R., à Rosário, à Rute - os livrinhos voarão até vocês em mão ou por correio -, e ao João C. (almost last, never least!, ontem pensamos muito em ti!).

Obrigada a ti que me fizeste assim um dia. Agora é assim - em tudo o que escrevo -, só assim, que estás em mim.



As pessoas não são apenas o melhor das cidades, a alma. As pessoas são o melhor de tudo. Sempre.