Às vezes parece que tenho muitos anos.
Às vezes parece que tenho muitos anos, já vivi muitas vidas, conheci e pertenci a muitos lugares, agora distantes, muitas pessoas, sempre presentes, às vezes.
Às vezes, a qualquer dia, a qualquer hora, uma imensidão de memórias desenrola-se na minha cabeça a uma velocidade que eu não controlo e que o encosto que procuro sempre, dessas vezes, tenta, em vão, amparar.
O melhor ano da minha vida foi o segundo da Faculdade. Por que razões não sei, por mais voltas que dê, por muito que reviva tudo o que aconteceu, que foi nada, ainda não percebi. Acho que teve qualquer coisa a ver com ter finalmente conseguido fazer de Braga a minha casa, a minha primeira casa, toda minha, só minha, para guardar, para sempre. Foi o ano em que andei feliz, genuinamente feliz, todos os dias.
O segundo melhor ano da minha vida foi o décimo-primeiro, não de vida, mas do liceu. Sei perfeitamente porquê. Chamava-se Celso, andava em Economia no ano à frente, e tinha um carocha verde-garrafa que tremelicava e soluçava, muito, demasiado, todo ruído, todo espirros-soluços-tremeliques ruidosos, e o atirava para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, lá dentro. Só faltava deitar fumo. Ou ir perdendo peças e desconjuntar-se a carcaça antes de chegar ao estacionamento.
Quando eu entrava no bar, das poucas vezes que ia ao bar da escola, e o Celso lá estava, como sempre, a jogar bilhar – sempre, mas especialmente na altura dos testes, especialmente quando tinham tido teste de Matemática: ele tinha sempre 20 a Matemática e incrivelmente resolvia os exercícios num terço do tempo regulamentar – no resto do tempo, o teste circulava pela turma toda, para garantir o maior número de positivas possível. No resto do tempo, até ao momento em que o apelo do bilhar se sobrepunha à generosidade e estava quase a dar o toque e eu estava quase a sair. – Quando eu ia ao bar, das poucas vezes que entrava no bar da escola, o Celso parava de jogar bilhar. Parava tudo. O Celso parava de jogar, e fazia parar o tempo. Encostava-se à parede, e fazia parar o tempo. Olhava-me e fazia parar o tempo. E as pessoas. E tudo. Menos nós. Menos o bater descompassado e grande, demasiado grande para aquele espaço, para nós, maior que nós, maior que tudo, o bater dos nossos corações.
Acho que tudo é um pouco assim quando se tem quinze, dezasseis, dezassete anos: demasiado grande, maior que o espaço e que o tempo, que nós – pelo menos.
Chama-se
João. Descobri há dias – ouvi ao longe Johnny isto, Johnny aquilo, confirmei hoje – gritaram-lhe lá do fundo qualquer coisa, João, e ele virou-se, não disse nada, não se riu, mas acusou o toque. João é um nome lindo e eu acho, acredito, que as pessoas que têm o mesmo nome, – mesmo que varie: em género, num ou noutro som, num ou noutro ditongo, numa ou noutra letra – as pessoas que têm o mesmo nome estão condenadas a dar-se bem. Há uma maneira de sentir, de estar, de ver a vida, de gostar de certas coisas que ‘por acaso’ são as mesmas, que o nome não dita, mas que contém indelevelmente, e que há-de unir sempre quaisquer duas pessoas com o mesmo nome. Sempre.
Possivelmente porque somos três, a minha irmã mais nova distribui os
stalckers – qual é a palavra em Português? – em três categorias: os não-nativos (i.e. indianos, chineses, ucranianos...) – que a importunam, os velhos – que afligem a Té, e os adolescentes – que me caem ao colo, quase.
Sacou o passe de uma daquelas carteiras que fazem muito barulho ao abrir porque têm fecho de velcro – ainda existem!?, isso acordou-me logo, há quanto tempo, desde o Celso pelo menos, mas suponho que vão de existir sempre enquanto houver quem tenha dezasseis, dezassete anos... Então, chama-se João e é muito caladinho, ensonado e maldisposto – possivelmente por isso é que nunca fala, nem grita, como os outros, nem se ri, nem nada. Semblante fechado, olhos muito abertos desde
aquele pedido de desculpas trapalhão. Os outros são umas quantas meninas, hoje pelo menos, costuma ser uma só, e um outro rapaz – que fala demasiado (e muito forte de timbre), tem genica demasiada (especialmente para cheirar o cabelo das meninas e roubar um
phone às meninas e tudo o mais) e boa disposição demasiada para as oito da manhã. Entraram todos e sentaram-se como é costume, por ali. Até havia três lugares vagos! Dois foram prontamente ocupados pelo rapaz dos demasiados e pela rapariga do costume, mas não o outro, igualmente desocupado não fosse o bem-dobrado sobretudo e a pasta do senhor que já lá estava desde o Porto, porque o João não quis importunar o senhor com um ‘Posso?’ pequenino, mas certamente demasiado para quem não diz nunca nada.
Lá teve de se sentar ao meu lado. Custou. Anda há que tempos, desde as desculpas –
note to self: nunca mais pedir desculpa com a mão no ombro de ninguém!, a sentar-se bem lá à frente, bem de frente para mim, a reproduzir, com muita força, o olhar de um Celso de há mais de dez anos até os nossos olhares se encontrarem. Anda há que tempos a esticar-se muito acrobaticamente, em espreguiçadelas que não lembram a ninguém, para onde quer que me vire. Anda a migrar de mim para as meninas do grupo que se apressam comigo para a saída num pêndulo constante de olhos com fita métrica incorporada.
Por isso hoje talvez tenha custado, custou, mas não teve outro remédio, lá tirou a mochila e se sentou. E virou-se para o lado dos amigos e voltou-se para a frente e virou-se para o meu lado, e olhou-me a bochecha primeiro – devia estar a contar os sinais – e depois o sol lá fora, como eu, e voltou-se novamente e roeu as unhas, e espreitou o meu
i-pod dentro da mala e olhou lá para fora outra vez e voltou a virar-se para os amigos e, aos bocadinhos, foi repousando no meu sossego – uma das minhas mais acarinhadas especialidades: sossegar gente do tipo adolescente – foi ficando mais e mais descansado, costas todas no banco, olhar sereno. E então fechei os olhos, a música era muito boa, e encostei a cabeça ao meu banco até chegarmos a Braga.
(E ele se levantar logo para eu passar e ele poder sacar dos olhos a fita métrica do costume.)